Retrocedersimetria: ficção
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era uma explicação improvável, mas possível
por Herberti Vidor Pedroso

O sol ia a meio-caminho do zênite, quando o alvoroço começou: um corre corre de adultos e crianças em direção ao pequeno cais enroscado nas pedras. Herrera, até então entretido com seu canteiro, se pôsbruscamente em pé, imaginando algum improvável acidente.

- Olhe tio, barcos da rainha! Gritou um rapazote que passava, correndo para juntar-se aos demais.

"Barcos da rainha?" Resmungou Herrera consigo mesmo, "Quem será que está descontente conosco desta vez?"

Desceu calmamente a pequena escadaria de pedra que levava ao cais, batendo as mãos uma na outra e na roupa para livrar-se da poeira, afinal, estava prestes a ter uma audiência oficial. Os três barcos haviam sido vistos logo que contornaram o promontório do lado direito da pequena baia, a uns duzentos metros. Embarcações nativas eram vistas constantemente, passando de lápara cá,só que à distância. As únicas que tinham autorização para chegarem alí eram as oficiais, e a intervalos mais ou menos regulares. Portanto, uma visita inesperada de três barcos com o estandarte de Sua Majestade era mesmo para gerar ansiedade.

- Será que é ela em pessoa? Perguntou uma mulher de pele morena a ninguem em particular.

- Não parece.Respondeu um rapaz também moreno. - Os barcos tem o sinal da rainha, mas estão sem escolta.

�A observação era pertinente", pensou Herrera. Com certeza, a rainha não estava naquela comitiva e isto só aumentava o mistério. "Bem...", resignou-se, "em mais alguns instantes saberemos com certeza".

O trio de embarcações foi manobrando lentamente e encostando no trapiche de maneira um tanto quanto inepta. Parecia estar carregando algo muito pesado. Tãologoimobilizou-sevários nativos saltaram para terra e caminharam até Herrera, abrindo caminho em meio à pequena multidão. Em momentos como este, era umtantodesconfortável ser o líder da comunidade. Os gestos que os nativos fizeram, disseram a Herrera algo que ele não acreditou. A princípio pensou ter entendido errado.Acomunicação ainda erauma prática difícil por ali.

Atendendo ao chamado,caminhouem direção aos barcos,mas foi obrigado a parar.Umgrande espantose apossou dele e dos demais pelo que viram: num movimento rápido e espontâneo um homem saiu da primeira embarcação, no que foi seguido por outrosquatro,saídos das outrasduasembarcações. Um grito, misto de surpresa e incredulidade,subiu de todos os humanos que se aglomeravam no pequeno espaço do cais, seguido de um silêncio igualmente impressionante.

- Sou Eliodor Jansen - falou o homem saído do barco estendendo a mão a Herrera. - Segundo capitão da Colombo, nave exploradora do Serviço de Astrocartografia do Governo da Terra.

A costumeira loquacidade de Herrera sefoi,mal conseguia crer no que via. Ficouboquiaberto,paralisado, enquanto o oficial continuava de mão estendida. Oscompanheiros do capitão Jansen, nesse ínterim, numa atitude planejada, mas não menos elegante, cumprimentavam a todos alegremente.

- Quem são vocês? falou Herrera aos solavancos, finalmente voltando a si. - De onde vieram? Como ...

Um sorriso agradável surgiu no rosto do capitão.

- O senhor é...?

- Herrera. Herrera Campins.

- Filho de Hector Campins?

- Sim eu sou. Mas... como sabe disto?

Ao responder, Jansen voltou-se para os demais, como a dizer que a resposta era para todos.

- Sabemos tudo sobre vossos pais, ou quase tudo. A história da Aventura tornou-se uma lenda na Terra. Nunca imaginei, um dia, estar frente a frente com os descendentes de tão honrado grupo de exploradores. Podem acreditar, é um momento especialíssimo para todos nós.

Uma menina de uns quatro anos agarrou-se á calça de Herrera e perguntou num tom de voz excitado:

- Papai, eles são de verdade? Eles são de verdade?

Um riso coletivo se fez ouvir e todos, intimamente, agradeceram à pequenina, pois sua inocência foioque definitivamente dissipou aquele ambiente de espanto constrangedor.Pouco a pouco os oficiais foram recebendo a recíproca de sua gentileza e, em poucos minutos, animadas conversas estavam em curso entre os recém chegados e os moradores.

- Mas me diga, o que significa tudo isso? Vocês realmente vieram da Terra? A curiosidadde era nítida no rosto de Herrera.

- Sim senhor Campins. A Colombo partiu tão logo a missão foi autorizada, há oito semanas.

A curiosidade tranformou-se em incredulidade.

- Oito semanas! Vocês gastaram apenas oito semanas da Terra até aqui?

- Na realidade menos, pois realizamos uma escala técnica em Vega para remanejar uma equipe de pesquisadores.

Aquiloera demais, mesmo para um homem dinâmico e arrojado tal como Herrera se considerava. Sua expressão era definitivamente infantil, como um menino que acaba de descobrir uma nova maravilha da vida. Outros haviam se aproximado e participavam do dialogo como ouvintes, pelo menos até aquele momento.

- Há quanto tempo vocês chegaram aqui? Já sabiam a nosso respeito? perguntou o rapaz moreno.

- Estabelecemos órbita há trinta dias terrestres atrás. Viemos numa missão primariamente inventarial. Era sabido haver vida aqui desde 2.132, quando uma sonda detectou sinais claros de vegetação. Ninguem na época imaginou que pudesse se tratar de uma civilização completa. Agora, quanto a vocês..., isto sim foi impensável.

Bruscamente foram interrompidos pelos nativos, que, com seus ruídos caracteríticos reclamaram atenção. Eles eram pequenos e roliços, com uma "pele" de tom verde-escuro. Trajavam sempre

uma espécie de túnica, tecida com um fio grosso, semelhante ao cipó terrestre. As diferenças de cor definiam a classe social. A comunicação só era possível mediante uma linguagem de sinais, estabelecida ao longo de uma geração.

- Estamos com algum problema? Quis saber o capitão. Herrera não deixou de perceber o "estamos".

- Eles geralmente são mau-humorados mesmo. Estão preocupados com as consequências de nosso encontro. Temem algum tipo de operação conjunta.

- Operação conjunta? Mas, por que esta idéia?

- O pequenino ali,disse Herrera apontado para a criatura de 1 metro e pouco que, no momento, confenciava ruidosamente com seus iguais.- Éum dos generais da rainha e sua função é desconfiar de nós e nos impedir de entrar em contato com o outro clã.

- Outro clã? O que é isso?

Herrera não pode deixar de sentir uma certa satisfação: até há alguns minutos estava em completa desvantagem, surpreendido que foi por uma visita mais que inesperada. Mas agora, a ignorância de Jansen acerca de uma realidade que ele, modéstia à parte, controlava muito bem, o tinharecolocadoem sua posição de honra. E fez questão usa-la.

- Bem capitão, esta é uma longa história. Explico-lhemais tarde.

A sala era despojada mas muito agradavel, construída como tudo o mais ali: restos da Aventura misturados à estranha madeira local.

- Então vocês foram obrigados a descer aqui?

- Exatamente comandante, respondeu a jovem Marieta Vergara, pesquisadora auto-didata e autoridade máxima, na comunidade, sobre a história da Aventura. - Um incêndio, que ninguem nunca soube explicar a causa, destruiu toda a sala-de-máquinas. Foi um verdadeiro milagre eles terem conseguido estabelecer orbita. A evacuação foi feita em menos de quinze minutos.O módulo de pouso estava a menos de 1 quilometro quando a Aventura explodiu.

Jansen não podia deixar de notar o prazer daquela jovem em contar os minimos detalhes. A vida dela tinha, repentinamente, ganhado um grande sentido. Aquilo ao qual ela se dedicara com a paixão típica dos adolescentes, encontrara uma finalidade prática.

- Hum-hum! Fez Adna Alonso, segunda-oficial de Ciências. - Está explicada a grande quantidade de detritos metálicos em órbita. Foi realmente muita sorte o módulo não ter sido atingido pelos fragmentos.

- Mas houveram avarias sérias, retomou a jovem. - Tanto é que no pouso perderam-se quatro de nós!

"Quatro de nós"pensou Jansen.A identificação era marcante.

- Quatro pessoas da tripulação original morreram? É isso?

- Sim Capitão. Rafael de Castro e Mirtes Maria, ambos biólogos. Também Ramon Leiria e Carlos Mendez, um engenheiro e o outro médico. Estão enterrados do outro lado da ilha, onde temos um cemitério.

- Vocês foram socorridos pelos nativos? Como eles reagiram? Quis saber Harold Mills, médico e antropólogo, com o seu anacrônico mas inseparável bloco de notas.

- Segundo meu pai..., disse Herrera, tomando a palavra não com total anuência de Marieta,- Eles cairam bem no meio de uma das interminaveis guerras civis locais. Achegada deles favoreceu a

um dos lados que acabou por vencer e assumir o poder neste terrritório. Como "gratidão", foi-lhes concedido ocupar esta ilha, onde estamos até hoje, como vocês podem ver. Na realidade, somos prisioneiros do Clã e sob constante risco de execução.

- Por que?

Marieta não resistiu.

- Por algo que conhecemos muito bem: medo e preconceito. Nossa presença é ofensiva para os "protetores", que temem nossa colaboração com os clãs dos territórios vizinhos. E por sermos diferentes, somos uma fonte permanente de receio e medo do estranho.

- Vocês não são objeto de pesquisa? Eles não tem nenhum interesse científico emumacomunidade alienigena encravada bem no meio do mundo deles?

O estilo de Mills era este mesmo: crú. Talves fosse próprio dos antropólogos. De qualquer maneira, ele expressou a dúvida de vários.

- Não sabemos tudo sobre os nativos. Aliás, sabemos muito pouco, considerando que estamos aqui já há uma geração, expôs Herrera.- Cientificamente, eles estão mais ou menos onde a humanidade estava por volta dos séculos XV ou XVI , guardadas a proporções, é lógico. Apenas a classe dos "protetores" e a dos "filhos" é que estão aptas genéticamente para praticar ciência. Os "construtores" demonstram ter um baixo nível intelectual. E a prioridade por aqui é manter o clã funcionando. Tudo o que eles planejam ou fazem é exclusivamente visando o cotidiano. Não perecem ter grande interesse em qualquer coisa mais abstrata.

- Entendo, arrematou Jansenpercebendo que poderiam estar sendo indelicados e portanto mudando totalmente otom da conversa.

- Senhor Campins, o oficial Mills nem sempre é assim tão direto, se bem que esta é uma característica muito útil em sua função. Ele também é médico e tanto ele como eu gostariamos que toda a comunidade passasse por uma verificação médica. Alguma objeção?

- Nenhuma capitão. Infelizmente Carlos Mendez não teve tempo de preparar ninguem para substitui-lo. Nestes últimos trinta anos o vovô Diego e depois minha própria esposa Anita e que têem feito o papel de "curandeiros da aldeia".

- Pois muito bem. Hoje vocês serão atendidos pelo "homem-branco da cidade"

Tudo começou em fins da terceira década do século 21, quando a tecnologia do hiperressonador foi finalmente dominada. Com ela, quantidades inimagináveis de energia ficaram repentina e facilmente disponíveis. E, como todo grande avanço, este gerou todo tipo de mudança e reorganização sócio-econômica. Países inteiros foram afetados: uns, que monopolizavam recursos energéticos, repentinamente se viram obsoletos e empobrecidos; outros, que de tão pobres viviam sem qualquer esperança real de desenvolvimento, viram-se colocados diante de novas e inesperadas oportunidades. Houve também, é claro, toda sorte de conlúio, pressão e chantagem, envolvendo desde indivíduos, passando por grandes corporações e chegando a governos soberanos. Até a sofrida raça humana chegar a um novo ponto de equilíbrio, outros trinta anos se passaram.

Por volta de 2.080, o hiperressonador havia sido adaptado com sucesso ao vôo espacial. O que até então era um projeto caríssimo, só suportável por países igualmente fortes, tornou-se acessível a muitos outros grupos: indústrias, corporações, universidades, e até seitas religiosas, todos se lançaram à exploração espacial, sob o mais variados motivos e pretextos. Durante quase duas décadas, este processo se desenrolou sem praticamente nenhum controle oficial. A liberdade era total. Porém, quando uma alarmante quantidade de destroços e corpos mumificados pelo vácuo, começaram a ser encontrados por todo o sistema solar, e até além, o recém instituído Governo da Terra, houve por bem estabelecer regras para a astronaútica. Seguiram-se anos de um refluxo no ímpeto explorador do homem, com a vantagem de ter permitido uma ocupação organizada do Sistema Solar e, após 2.127, dos sistemas próximos, com o desenvolvimento do Hipersalto.

E foi por ocasião do "boom" dos anos 80 e 90, que surgiu a Aventura, a primeira expedição exploratória planejada, montada e executada por uma universidade. Sob a competente e carismática liderança de Hector Campins, laureado físico e filósofo, à época reitor da Unisula ( Universidade Sul-Americana, o Maior campus do hemisfério), um time de vinte e dois cientistas partiram em uma viagem cujo objetivo era chegar o mais longe possível, "até à exaustão, para termos um motivo para descansar" dizia o lendário professor. A espaçonave Aventura deixou a órbita terrestre em meados de 2.092, acelerando rumo a um ponto no céu boreal, com sua tripulação em estado de semi-hibernação. O computador de bordo identificou a nave para as escutas na Terra, pela última vez, em janeiro de 2113, não havendo nenhum outro contato depois disto. Desaparecia a espaçonave, nascia a lenda.>>

- Então? Perguntou Jansen curioso quanto a resposta. - Como eles estão clinicamente?

- Depois do que eu ví..., começou o médico, torcendo os lábios como se estivesse se preparando para dizer algo absurdo. - Estou sériamente inclinado a reavaliar minhas convicções acerca de Deus.

Jansen ficou ainda mais interessado.

- E por que razão? O que há de errado?

- Esta é a questão: deveria estar tudo errado, mas não está!

- Certo Harold: pare com esta enrolação e me diga de uma vez o que está havendo.

- Não há como seres humanos viverem aqui. Pelo menos não por muito tempo. Por uma geração inteira então:não mesmo!

- Você se refere ao meio ambiente?

- É claro. Os mares são muito alcalinos, a vegetação é de um tipo totalmente estranho de celulose, se é que podemos chamar assim; o solo, pelos levantamentos que temos feito, é paupérrimo em elementos organicos tal como os conhecemos. Isto sem falar no nível de radiação ambiente que é alto, a ausência de um campo magnético para brecar partículas de alta-energia e a duração do dia: como este satélite tem a rotação presa, seu período dia-noite é igual ao de rotação em torno do gigante gasoso, cerca de 8 dias. Nenhum indivíduo nascido na Terra aguentaria isso muito tempo.

Jansen ficou a encarar seu oficial médico por alguns instantes, assimilando e processando tudo o que ouvira. Na verdade, ele também estava a pensar em algumas incongruências, percebidas desde que contactaram os descendentes da Aventura.

- Mas eles mantêm um horta e eu ví um cercado para animais do outro lado, falou Jansen sem muita convicção.

- Eu não acredito capitão, que uma horta comunitária e algumas galinhas possam manter um grupo humano de quase cinquenta pessoas por quarenta anos.Mesmo porque já é muito estranho que qualquer coisa tenha vingado naqueles canteiros. Além do solo ser pobre em nutrientes, nossos vegetais não estão adaptados para um tal ambiente. Este planetinha é tão ruím para plantas quanto para humanos.

A argumentação de Mills era simples mas indiscutível. Realmente havia algo alí que carecia de um urgente esclarecimento.

- E o que me diz dos nossos anfitriões? Teve tempo de analisa-los?

- Bem, tenho tentado seguir sua recomendação em ser discreto, já que nossa missão acabou por se tornar um contato diplomático. No entanto, tenho descoberto fatos interessantes.

- Por exemplo?

- Usando nossos critérios científicos, as "coisinhas verdes" podem ser classificadas como pertencentes ao reino vegetal mas com traços do reino animal.

- Vegetais? Estamos estabelecendo relações com uma civilização de vegetais?

- Eles são, em grande medida, autotróficos: cada indivíduo sintetiza parte de seu próprio alimento e, em comunidade, eles conseguem alterar o meio ambiente o bastante para produzirem mais. Minhas leituras mostram ainda que eles dependem da luz natural para respirar com eficiência, algo como uma fotossíntese. Também não possuem um centro nervoso, ou algo que possa ser comparado a um cérebro, mas há neuro-nódulos espalhados por todo o corpo. E o mais curioso: eles podem "se plantar" .

- Se plantar? Explique.

Mill virou-se a apontou em direção ao conjunto de casas construídas pelos naúfragos da Aventura.

- Vê aquelas plantas espalhadas em redor? São indivíduos adultos, só que plantados.

- Tem certeza disto?

- Absoluta!

- E tem alguma idéia do por que?

- Talvez Herrera e os seus saibam, já que convivem com essas coisas diariamente. Uma coisa é certa: as plantas não estão mortas.

A crueza característica do corpulento médico-antropólogo fazia com que os fatos se tornassem ainda mais estranhos.

- Continue com o sensoreamento. E quanto a discrição, pode deixa-la de lado.

Esta era a deixa pela qual Mills estivera esperando. Como gratidão, deu uns tapinhas nas costas de seu superior : "- Certo! Grande comandante!"

Jansen sabia que não tinham muito tempo e desejava, sinceramente, ajudar aquela comunidade perdida num mundo que não lhes era natural. Mas, ao mesmo tempo, seu treinamento lhe ensinara a necessidade de conhecer, o mais profundamente possível, uma dada circunstância antes de agir sobre ela. vMas, a trinta quilometros dali, as circunstâncias estavam se fechando e frustrando as tentativas de agir sobre ela.

O primeiro capitão Aaron Khafir estava cansado e enjoado: o cheiro acre e penetrante que emanava da câmara real estava se tornando um impecilho até mesmo para seu raciocínio. Os amostradores garantiram que tal emanação não era tóxica, no entanto isto não tornava sua presença ali menos desconfortável.

E o lugar não era feio. Havia uma beleza exótica, diferente, um certo padrão estético. A sala, quase circular, media uns quinze metros de diâmetro. O trono (ou seja lá como o chamassem) ficava no centro, cercado por umas estruturas simétricas que subiam até o teto, onde se fundiam com uma abóboda translúcida, feita de alguma substância orgânica. Ao redor do trono haviam também dois grupos de nativos: os serviçais, atentos às necessidades da soberana, e osgenerais, fonte do cansaço que Khafir sentia.

A rainha, na verdade, era o casal primário. Por ocasião do acasalamento, os corpos do macho e da fêmea se entrelaçavam e se embutiam de tal forma que, para todos os efeitos práticos, podiam ser tratados como um só indivíduo. Em uma dada geração o parte masculina prevalecia, e então o clã tinha um rei. Em outra(como agora), podia prevalecer a feminina, surgindo uma rainha. Com qual dos dois o diálogo seria mais fácil, Khafir jamais saberia. O certo era que, com a atual as coisas iam mal.

Jamais seria possível a um ser humano conversar diretamente com um jadeano, exceto usando um código de gestos. A fonação neles se dava por meio de um sulco tripartido, localizado no centro de que poder-se-ia chamar de face. Cada um dos três lábios formados pelo sulco, podiam vibrar só ou em conjunto com os outros, formando uma infinita gama de assobios, chiados, roncos e sons que mais pareciam ruídos intestinais. Durante as últimas duas semanas, a equipe de contato trabalhara duro para estabelecer um vocabulário mínimo, à partir do qual o tradutor pudesseoperar. E tinham feito um bom serviço. Se a diplomacia falhasse, não seria por culpa deles. No momento os generais, uns quatro ao todo, estavam conversando agitadamente com a rainha, e Khafir não precisava do tradutor para saber que estavam todos contra a presença dele e

da nave no planeta. "Estrela suja" foi o termo que o tradutor usou para interpretar o sentimento que nutriam ante a visão da Colombo cruzando o céu noturno de Jade,nome ainda não homologado dado ao satélite devido à sua coloração esverdeada. Quando a conferência familiar terminou, a rainha voltou sua atenção para o comandante terrestre.

- Sua presença ... é incerta/inconveniente ... agora/no momento. Somos/sou de decisão/opinião .... que devem/precisam ... partir ... e remover/retirar/tirar .... seu/suaequipe/exército de (..?.. Jade ... imediatamente ... Remoção/retirada/saídados outros fora dedúvida/pergunta/questão!

Khafir acompanhara a fala real pela tela do seu comunicador, conectado que estava à maquina tradutora. Um sentimento de impotência desceu sobre seu coração e teve que se reprimir para não demonstrar sua enorme frustração. Ele acompanhara, também toda a conversa dos generais ( mesmo sabendo ser uma indelicadeza ), ficando confuso com certas expressões: "comprar/ganhar tempo", "nosso projeto/plano quase terminado/encerrado". Aparentemente a agenda dos nativos continha algo que, a chegada da Colombo, prejudicara. O que poderia ser?

- Capitão,chamou Adna Alonso. - Poderia me acompanhar? Quero que veja uma coisa.

Jansen educadamente se afastou do pequeno grupo de ilhéus, com os quais confraternizara durante a última hora e seguiu sua oficial de ciências. Subiram e depois desceram atravez de um terreno ondulado, numa caminhada de cerca de quinze minutos. Após contornarem um grande matacão, que obliterava parte do campo visual, ela parou e apontou.

- É ali.

Jansen apoiou-se na maciça pedra, um tanto ofegante, apenas por um momento. Tão logo seus olhos registraram a cena, a pura curiosidade moveu novamente suas pernas.

Estava diante de uma plantação. Pelo menos parecia uma: dezenas de espécimes, iguais as que ficavam junto as casas da ilha, colocados ordeiramente em filas, a intervalos regulares. Mas, foi quando chegou mais perto, que teve a primeira experiência com o terror em sua vida. Chegou a recuar vários passos, com uma sensação gelada nas faces e com o coração a sair-lhe pela boca. Num esforço supremo, extremo, parou e fechou seus olhos, respirando fundo e fazendo sair de seus pulmões e de sua mente toda aquele sentimento. Pouco a pouco, o terror foi cedendo lugar à vergonha. Teve que buscar coragem muito longe antes de poder abrir o olhos novamente e encarar Alonso. Que benção indizível estarem apenas eles dois ali.

- Perdoe-me oficial Alonso. Não estava preparado para isto. As conversas das últimas horas me amoleceram.

- Não se preocupe capitão. Quando estive aqui pela primeira vez eu vomitei, e precisei de vários minutos para me recuperar.

- Mas... afinal, que tipo de droga é esta?

Provando para si mesmo que era forte, Jansen olhou novamente para a planta mais próxima. Havia achado que eram semelhantes as que ficavam na aldeia, porémenganara-se:o formato roliço e baixo persistia, mas a pele não tinha mais o tom esverdeado, era translucida, quase transparente. Por dentro, misturado a um complexo de ligamentos, membranas, artérias e fluídos, havia mãos humanas, pernas humanas, vísceras expostas e uma face, com uma expressão tão sem vida que Jansen sentiu seu fascínio pela exploração cósmica, esmaecer.

- Estive conversando com Harold. Desde que colocamos os pés neste mundo, temos checado e cruzado nossos dados. Com o levantamento médico que ele fez mais o que "cavei" neste cemitério...

- Cémitério?! Interrompeu Jansen.

- Sim. Aqui é o cemitério da aldeia, onde está sepultada toda a tripulação da Aventura e alguns da segunda geração.

- Você ia dizendo...

- Harold e eu tiramos algumas conclusões e formalizamos algumas hipóteses, arrematou a biofísica com uma convicção profunda na voz. - Tudo nos faz crer que, de uma forma ainda incompreensível, os jadeanos é que estão mantendo os descendentes da Aventura vivos e relativamente saudáveis.

- Relativamente?

- Sim! Pelos padrões médicos da Terra, eles estão altamente anêmicos, subnutridos, com baixíssima imunidade e apresentando sintomas nítidos de estresse crônico. Nâo estão muito melhores dos que jazem aqui.

- Mas estão ai. Construiram uma comunidade aparentemente bem adaptada e ativa,tentou Jansen.

Adna Alonso deu com os ombros.

- Contra fatos não há argumentos, dizem. Mas tanto eu como Harold concordamos que nenhum deles deveria estar vivo.

- E onde este horror entra na história? Disse Jansen apontando para a planta próxima de si.

- Nossa hipótese é que, quando a tripulação foi sepultada, os jadeanos, que são parcialmente vegetais, assimilaram atravez do solo a biomorfologia dos corpos: estrutura genética, padrões metabólicos, tipos de tecido e por ai em diante. Por favor não me pergunte como isso é possível! Estamos apenas tentando organizar o caos. Mas é evidente que eles mantem um forte elo comunicativo entre si, mesmo a distância. Assim as informações vão sendo passadas de indivíduo para indivíduo. Porissoéque,coletivamente, eles conseguem alterar a biosfera, de maneira localizada e temporária.Parece que esta ilha é um imenso laboratório.

- E com que propósito? Por que fariam isto?

- Lembra-se de nossa conversa na sala de Herrera, sobre o que ele disse acerca do desinteresse dos nativos em ciência e pesquisa?

- Sim me lembro.

- Pois estou certa de que ele foi pesquisado a vida inteira e nunca se deu pela coisa. Ele e todos os outros. Os nativos são tão curiosos e interessados em descobertas quanto nós, apenas seus métodos é que são muito diversos. As plantas junto as casas são sondas. Tudo o que os humanos fazem é registrado de algum modo.

- Isto aqui então é uma pesquisa científica?

- Pelo menos parte dela. Dado o caráter militar desta sociedade, eu não ficaria espantada se o objetivo final fosse o de conquista.

Jansen entendera a colocação da cientista, mas ficou a pensar se ela também percebia todas as implicações do que acabara de dizer.

Tão logo Jansen recebeu a ordem passou-a a todos os seus comandados: retornar à base na cidadela real e deixar Jade,tudo em 3 horas. Quanto aos oficiais nenhum problema, mas sentiu uma reação diferente por parte dos ilhéus.

- Contamos com a compreensão de todos, falou o capitão sem emoção na voz ao mesmo grupo que os recepcionara 1 dia antes. - Temos que partir imediatamente, por ordem da soberana local. O primeiro-capitão Aaron Khafir passou esta última semana na cidadela, em conversações diplomáticas, cujo principal assunto foi vocês. O governo da Terra tem todo interesse em que voltem para o planeta-pátrio de vossos pais, mas infelizmente não depende só de nós. Na verdade, não estávamos preparados para este encontro. Foi uma grande surpresa quando a rainha nos revelou acerca de uma comunidade de humanos aqui. No entanto, estou autorizado pelo comandante Khafir a garantir-lhes que dentro de alguns meses uma nova expedição chegará e as negociações serão retomadas. Desejamos paz e felicidade a todos.

Seguiram-se alguns minutos de emoções fortes. Jansen havia aprendido a estimar e admirar Herrera, mesmo conhecendo a terrivel verdade.Acaso tinha ele alguma culpa? Aquela circunstâcia anormal o excluia da possibilidade de ser admirado? Certo que não. Alguém que conseguiu manter unida e funcional, uma pequena comunidade perdida nos confins do espaço em um mundo insalubre, tinha algo de especial dentro de si.

Os tres barcos iam voltando pelo mesmo caminho em que chegaram. Acenos eram trocados com vontade e lágrimas por ambos os lados. O pequeno cais estava cheio novamente tal como no dia anterior. Mesmo Jansen não pode evitar um marejar nos olhos. Mas aquele sentimento, um tanto contraditório, foi sufocado por um especialista.

Harold insistiu em voltar no mesmo barco que ele, e foi logo deixando claro o porque.

- Espero que o senhor não esteja triste pelo fato de os naúfragos terem de ficar.

- Na sua opinião eu deveria estar alegre?

- Seria mais razoável, já que nenhum deles poderia viver fora daqui.

- Explique-me porque.

- Vou fazer melhor, disse Mills sacando seu analisador portátil. - Vou lhe mostrar.

Teclou alguns comandos no pequeno painel e a tela se iluminou, mostrando uma série de imagens em movimento.

- Estes são os registros médicos que fiz na aldeia. Tive o cuidado de escanear cada um deles, mesmo os que não me permitiram, afinal o senhor mesmo me autorizou a deixar a discrição de lado...

- A discrição, não a educação.

- Será que isso vai me render uma corte marcial?

- Dificilmente. Prossiga.

- Veja as imagens. Há algo que possamos considerar anômalo?

- Você pode dizer melhor que qualquer outro, mas... (Jansen procurou se concentrar na avalanche de informações que corria pela tela) ... o escaneamento está mostrando que... o que?! Acúmulo de nódulos exógenos ao longo da coluna vertebral!

- Exato. A prova de que precisávamos.

- Prova de que?

- De que nossos amigos só estão vivos unicamente porque os jadeanos os mantêem vivos.

- E o que seriam estes nódulos?

- Na falta de um termo melhor "implantes". A natureza exata deles eu não pude determinar. Mas são biologicamente ativos e de alguma maneira integrados ao metabolismo humano.

- Disse ainda há pouco que os descendentes da Aventura só poderiam viver aqui. Os nódulos morreriam fora deste ambiente?

- Estou certo disto. É óbvio que tais corpos estranhos deveriam estar provocando todo tipo de reação defensiva por parte do organismo, mas não é o que acontece. De alguma maneira a pesquisa jadeana descobriu uma maneira de bloquear tais reações. Talves pela alimentação, talvez por alguma inoculação periódica, ou mesmo....

Mills parou repentinamente, com uma expressão de dúvida no rosto. Éra evidente que sua linha de raciocínio o tinha levado porum território desconhecido.

- Continue, solicitou Jansen.

- Há evidências de que a rainha exerce uma forte influência 'psíquica' sobre seus súditos, capacidade esta compartilhada pela classe dos "filhos". Não sei se podemos chamar de telepatia. Mas de qualquer maneira, é razoável imaginar que até mesmo nossos semelhantes estejam sujeitos a tal influência. (novamente a expressão de humilhação ante a dúvida). Pode não ser uma explicação provável, mas é possível.

******

Os barcos deslizavam a uma velocidade considerável sobre aquelas estranhas águas amarelo-esverdeadas. O sol daquele dia interminável estava agora a pino, iluminando tudo quase sem sombra. Mas no coração de Eliodor Jansen, uma região escura se formara e, ele temia isso, iria acompanha-lo pelo resto da vida. Apesar de não saber naquele momento, o destino jamais o traria alí novamente. Estava deixando para tras um capítulo inconcluso em sua própria história. Todas aquelas vidas deixadas à própria sorte, as circusntâncias tenebrosas em que viviam... Não haveria uma solução? Repentinamente uma preciosa lenda, que havia enriquecido sua adolescência com valores elevados, se transformara num conto de terror. Infelizmente em seu ser, não haveria mais espaço para os Filhos da Aventura.

FIM

acerca do conto...
Título: Era Uma Explicação Improvável, Mas Possível
Data:
Autor: Herberti Vidor Pedroso
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