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saí p'ra comprar cigarros
por Ivan de Almeida Junqueira <[email protected]>

Saí p'ra Comprar Cigarros

De repente, como quem desperta de uma distração profunda, reconheceu a rua em que estava caminhando, e estranhou. Como fora parar ali? Era a Rua Santa Clara, a cinco quadras da sua casa, mas saíra apenas para comprar cigarros, por que estava ali agora? Será que se distraíra tanto que caminhara sem perceber, a esmo? O engraçado é que não se lembrava absolutamente do que pensara ao caminhar. Distraíra-se com o quê? Respirando fundo, como quem afasta o sono, virou-se para pegar o caminho de volta e olhou o relógio para ver quanto tempo perdera. Foi ai que o mundo estremeceu para ele. Aquele relógio não era o dele. Viu um relógio barato, com o vidro já arranhado e com a pulseira gasta, e o seu era outro, um belo Mido. Mas seu espanto não acabou aí, pois, num centésimo de segundo, percebeu que também o braço em que o relógio estava não era o seu.

Um tremor sentido em cada uma das células do corpo o dominou. Sentiu medo como nunca sentira, e fechou energicamente os olhos, num esforço para despertar daquele sonho estranho. Quando os abriu, entretanto, o braço continuava alheio, o relógio errado, e ainda errados eram os sapatos, a alça, a camisa e o resto de si. Não era ele, e, no entanto, era ele. Aquele não era o seu corpo, nem aquela era a sua roupa. Encostou-se na parede de um prédio, por instantes, em um momento em que quase se deixou desfalecer. Tonto, procurou em uma vitrine o seu reflexo, mas viu apenas a confirmação do pesadelo.

Sentiu desespero, medo, terror. Creu que ficara maluco e que estava vivendo alucinações, ou melhor - tal era o horror que experimentava -, teve esperança de que apenas tivesse enlouquecido. Lembrou-se da sua família, de sua mulher e de seus filhos, que ficaram esperando em casa quando saíra após o jantar, e por eles temeu mais, por intuir, subitamente, que nunca voltaria. Uma dor profunda e penetrante transpassou-lhe a alma. Olhou novamente o relógio. A hora ali marcada era coerente com o horário em que saíra de casa, apenas meia hora parecia haver passado, mas a data! A data estava errada, com certeza, porque saíra na quarta-feira 25, e o relógio informava ser o dia 26.

Enquanto caminhava em direção à sua casa - pois formulara logo um plano: iria até um local em que fosse conhecido, e pediria que o socorressem e o levassem para atendimento psiquiátrico - passou por um jornaleiro, e o jornal pendurado não era aquele que lera de manhã. Era o jornal do dia seguinte, o maldito dia 26 de junho de 1969 que o estúpido relógio dizia ser. Então passara uma noite fora! Onde? O que fizera durante essa noite? Onde estivera? O que estava pensando a sua mulher? Que fugira? Que morrera?

Enquanto caminhava, atordoado, passou alguém e o cumprimentou: "-Oi Nico!". Mas ele não conhecia aquela pessoa. Continuou seu caminhar angustiado, olhando a todos os que por ele passavam na Nossa. Senhora de Copacabana, perscrutando no rosto de cada um a resposta para o transe que vivia. Finalmente chegou no bar da esquina da sua rua. Era freguês. O Antônio do Bar era seu conhecido antigo, pois, como ele, desde a adolescência morava nas proximidades, e entre eles havia aquela amizade típica das vizinhanças de Copacabana, que transcende as classes sociais. Entrou no bar e sorriu, disfarçando o desespero, mas não viu no olhar que recebeu qualquer reconhecimento. Gelou. Pediu uma cerveja, mas tomou apenas um copo antes que se lembrasse de ver se tinha algum dinheiro na calça desconhecida. Enfiou as mãos nos bolsos, e encontrou uma nota de cinco, o que lhe acalmou quanto ao pagamento da cerveja. Enquanto bebericava, olhava de soslaio para o dono do bar, esperando dele uma palavra, um simples gesto de reconhecimento que o devolvesse a si mesmo, mas isso não acontecia. Ao contrário, percebendo seus olhares, viu no outro surgir a desconfiança.

Bebendo pouco, quase nada, esperou surgir algum dos seus conhecidos que freqüentavam o mesmo bar. O primeiro a chegar foi o Fábio, que passou por ele como se não o visse e encostou-se no balcão. Comentou com o Antônio:

- Fui ao enterro do Haroldo, porra! Como é que o cara vai morrer assim! O táxi nem teve culpa, ele é que atravessou de repente. A Lúcia tava chorando às pampas.

- Porra; o Haroldo deixou a Lúcia com três filhos. Vai ser foda p'ra ela.- O Antônio dizia, demonstrando realmente certo pesar no rosto.

- É, mas na grana acho que fica tudo bem. Ele era do Banco do Brasil e ela vai ter pensão...

E assim foram falando por mais uns quinze minutos, antes que o assunto mudasse para a mulher do número 28, que passava por ali sempre, e que o Ferraz dizia estar comendo.

Ouvindo, aterrado, soube das circunstâncias de sua morte. De como atravessara a rua, desatento, e de como fora colhido pelo Aero Willys. Soube que sua morte fora instantânea. Que a Lúcia fora chamada em casa, tendo corrido desesperada até o acidente - pois foi na esquina da rua onde morava -, e ali fora consolada pelas vizinhas, enquanto alguém providenciava as velas para cercar o corpo - soube isso quando comentaram ser engraçado que sempre aparecessem tais velas cercando os mortos das ruas.

Não agüentando mais o bar, com a cabeça girando, mas não pela bebida, caminhou até à orla e sentou-se em um banco vazio, na brisa suave do mar. O "que" ele era agora? Quem era esse, no qual estava? Este corpo era mais velho, com certeza! Não tinha os mesmos trinta anos, mas algo em torno dos quarenta e cinco. Vestia-se simplesmente. A calça era velha e a camisa azul tinha alguns cerzidos. Mexeu nos bolsos. Uma Carteira de Trabalho, um pente, alguns cruzeiros que sobraram da cerveja, um chaveiro com uma chave, talvez do lugar em que morava. Na carteira era Nicolau dos Santos, faxineiro, estando nela anotado que fora despedido no dia anterior do Edifício Dom Ramiro.

*****

Vagou e dormiu pelas ruas. Após dois dias disso, aumentaram os momentos em que o estupor desaparecia, e cada vez sentia mais saudades dos seus. Procurava, então, passar pela sua rua para, quem sabe, vê-los, e chegara, de fato, a cruzar com eles algumas vezes. Vira o Jorginho passar na mão da sua sogra, e viu-o triste, mas, criança pequena que ele era, viu-o também gargalhar, e isso o alegrou. Viu os outros dois, mais velhos, nos quais a tristeza era mais firme. Viu Lúcia, o rosto controlado, mas parecendo prestes a explodir em lágrimas.

Foi também ao Edifício Dom Ramiro sendo recebido com reprimendas pelo porteiro-chefe, chamado pelos demais de Seu Manoel, que lhe disse não entender de jeito nenhum suas atitudes no dia em que fora mandado embora - o dia perdido. Que respondera aos moradores como se não fosse empregado do prédio, que passara o dia saindo e voltando, e que virara as costas quando o síndico estava lhe repreendendo. Disse que fosse imediatamente ao quartinho no qual dormia, na cobertura do prédio, e recolhesse suas roupas e suas coisas, pois o Dr. Marcelo não queria vê-lo mais por ali. Deu-lhe um envelope com algumas notas e mandou-lhe assinar um recibo. Durante alguns momentos não sabia o que assinaria, se Haroldo ou Nicolau, mas, mesmo quando optou pelo último não empunhou a caneta, pois não sabia de que jeito o Nicolau assinava. Disse que estava nervoso e por isso deixaria sua impressão digital no recibo, sujando o seu dedo com a própria tinta da caneta e calcando-o, depois, no papel. Viu que o Manoel não gostou, mas percebeu que ele preferia não contrariá-lo.

O porteiro chamou um rapaz com macacão de zelador, e disse que acompanhasse o Nicolau até o quartinho, e assistisse enquanto ele pegava suas coisas, para que nada mais fosse levado. Subiram até o telhado, o rapaz dizendo que era novo na vaga. Em uma mala marrom de papelão, que lhe foi indicada como sua, recolheu algumas roupas que estavam por perto, tendo o rapaz lhe apontado mais alguns objetos; um sapato bem usado e uma flâmula do Flamengo, dizendo que deviam ser dele, pois já estavam no quarto antes que ele tivesse trazido sua bagagem.

Ao sair do Edifício Dom Ramiro, porém, só quis voltar para os seus, só quis cuidar dos seus, só quis vê-los! Com a mala na mão, caminhando pela Nossa Senhora de Copacabana, ia, sem querer, mais uma vez na direção da casa em que morara.

*****

Jorge desligou o carro, e sua mãe abriu a porta para sair. Já eram 11:30h. Tinha marcado a vistoria do carro para aquela manhã, mas teria que remarcá-la. Sua mãe insistira - Ah, Dona Lúcia! -, e ele cedeu de bom grado à sua insistência para levá-la ao Caju, no enterro do Velho Nico. Seus irmãos, um deles morando em São Paulo e o outro nos Estados Unidos, tinha certeza de que teriam querido ir também. Durante quase trinta anos o Nicolau fora porteiro do seu prédio, tendo continuado na portaria mesmo quando já podia estar aposentado, até que morreu, subitamente, do coração. Morte providencial para o síndico, que estava em uma situação desconfortável, querendo despedi-lo, pois o Nico já não tinha mais idade para a função. Mas ele, Jorge, gostava do velho. Quando era garoto, no verão, ele tirava a hora do almoço para levá-lo com os irmãos à praia para jogarem bola, e jogava com eles, e durante o ano os acompanhava até a porta da escola, algumas vezes indo buscá-los. Sua mãe lhe dava algum dinheiro para fazer isso, e também para fazer alguns trabalhos pesados de faxina, assim como pequenos consertos na casa. Desde que fora trabalhar no prédio, o velho parecia ter se encantado com eles, "os meninos", e vivia dizendo que se pareciam muito com os irmãos que deixara no Ceará. Era muito ligado à família deles.

FIM

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Título: Saí p'ra Comprar Cigarros
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Autor: Ivan de Almeida Junqueira
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