Retrocedersimetria: ficção
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nos confins
por Jorge Candeias <[email protected]>

­ Entra.

A porta fechou-se com um estalido plástico. Ele atravessou-a e entrou. A porta abriu, resmungando.

­ Senta-te.

A cadeira flutuou na sua direcção. Ele sentou-se.

­ Fala.

­ Tenho um problema...

­ Que problema?

Ele hesitou um momento, as mãos contorcendo-se nos braços translúcidos da cadeira.

­ Ontem o painel de navegação abraçou-me!...

Ela flutuou, quase absurdamente. Os seus olhos estenderam-se em torno das suas órbitas elásticas e tocaram o cérebro dele. O painel tinha-o abraçado.

­ E então?

­ O quê?

As lâmpadas desceram daquilo que deveria ser o tecto e olharam perplexas para o espaço lá fora. Uma parede partiu para parte incerta.

­ E então? Onde é que está o problema?

Ele remexeu-se na cadeira. Ela gostou. A cadeira.

­ Bom... não foi agradável... é isso...

­ Deverei dizer ao painel para não te voltar a abraçar?

A parede voltou, acompanhada das estrelas. As lâmpadas recuaram, envergonhadas, e apagaram-se numa breve fúria fugidia. Ele girou sobre si próprio, ficando voltado de pernas para o ar, embora não houvesse ar e as pernas fossem pedaços inúteis de carne indigesta.

­ Creio que seria o mais indicado.

­ E se ele não quiser?

Pela porta fechada entrou flutuando uma cadeira amarela, feita de chumbo pesado. Parou, numa travagem perigosa cheia do chiar de pneus, e recitou numa voz musical:

­ "O painel de navegação pede a comparência imediata do piloto!"

Após o que voltou a sair. Pela porta fechada.

­ Terá de ser ajustado! Aliás, há já algum tempo que ando a pensar fazer-lhe uma reparaçãozinha!

­ Ele não vai gostar...

­ Eu quero que ele se lixe!...

A galáxia de Andrómeda apareceu entre eles a girar, enquanto piscava os seus olhos pestanudos.

­ Ainda estamos muito longe desta menina?

E ele apontava para a galáxia.

­ Faltam ainda quase dois meses.

­ Que chatice!...

A galáxia deitou-lhes a língua de fora, numa careta líquida, e partiu, deixando na parede um buraco de um Angström de espessura. A cadeira amarela regressou, quase simultaneamente, e recitou de novo a sua mensagem na mesma voz melíflua de há pouco. Depois, atravessou a porta entreaberta e eclipsou-se, deixando no ar o seu cheiro amarelo.

­ Estás a ver? Ele ama-me!...

­ O painel?

­ Claro! Quem querias que fosse?

A nave estremeceu em breves gargalhadas. Um enorme sorriso surgiu, lá fora.

­ Cala-te, nave!

O estremecimento aumentou.

­ Bolas! ­ disse ele, e coçou uma orelha com as pernas de trás, furioso, alaranjado.

­ E que fazemos com o painel?

E a voz dele tinha a forma de uma serra mecânica:­ Desliguemo-lo!

­ Não, não podemos fazer isso...

Da parede saltou um velho castiçal, com velas redondas a arder, em espiral, enfunadas pela leve brisa que soprava do Norte.

­ Poderiamos tentar mudar-lhe os gostos sexuais.

Uma leve ameaça roçou pelos cabelos dela, que se erguiam, sedosos, no ar.

­ Não! Assim passaria a ser eu a vitima, nao pode ser!

­ Pois sim, mas tu, pelo menos, não tens de dirigir esta nave, não és tu o piloto.

Um sorriso bebé nasceu na boca dela. Pôs-se de pé, lentamente, e atravessou a porta que se abriu, sorridente.

­ Vou falar com ele. ­ gritou ela através da porta fechada.

Ele ficou só, acompanhado de um grupo de estrelas e de uma cadeira. Pouco depois as estrelas sairam, aborrecidas, murmurando bramidos de tédio. Ele e a cadeira entreolharam-se com olhos baços e ele encolheu os ombros, indiferente. Pouco depois já dormia.

Acordou abracado à cadeira e sentiu uma humidade secreta na roupa. A cadeira olhava-o com olhos ambíguos e um sorriso estampado nas costas. A nave estremeceu e as paredes recuaram para o espaço. Risos cristalinos ecoaram no vazio ao mesmo tempo que as luzes se apagavam.

 

No entanto, cá de fora, do espaco, tudo se mostrava vulgar, convencional, feito de Ficção Científica comum: a nave vogava rápida em linha recta, estendendo uma colcha de fogo atrás de si, os motores rugiam de um modo quase felino e ao longe, num cenário de fita hollywoodesca, iam passando as estrelas e as galáxias numa cadência uniforme. Como é lógico e normal, as estrelas passavam muito mais rapidamente que as galáxias.

 

­ Psst! Ana!

O murmúrio ecoou pela nave, ressaltando nos cantos como uma bola de pingue-pongue. Mas ela nada escutou. Ele compreendeu e deixou-os em paz.

 

Mais tarde encontraram-se:

­ Então? Que tal?

­ Mais ou menos. Ele nao é grande coisa, mas eu esperava pior.

Um sistema solar entrou pelo buraco deixado por Andrómeda e tentou contar-lhes, bêbedo, a história da sua vida. Eles fugiram-lhe, escapando-se através da única porta daquela sala. A tal que está sempre fechada.

­ Sabes ­ disse-lhe ele ­, eu estive com uma cadeira.

­ Gostaste?

Encolheu os ombros.

­ Sim...

 

Esvoaçavam algures na nave, perdidos. Ele tomou-lhe um pulso. Ela rodopiou, a saia de gaze estendendo-se em ondas marítimas pelo espaço e levou-o consigo em direcção ao tecto. Embora ali não houvesse tecto. Ele puxou-a para si.

­ Ana... ­ disse ele.

­ Sim?

Uma sombra vermelha cobriu as luzes.

­ Gostava de experimentá-lo contigo.

­ ...

 

Algures na nave, num sítio perdido, as luzes fecharam os olhos.

 

 

Era uma vez um velho muito velho, um velho excitado e trémulo, como todos os velhos. Dizia este velho, como a Maioria dos velhos, que a juventude estava perdida, completamente depravada, alienada, meu Deus, o que ele dizia! Achava inumana, abjecta, a actividade sexual com painéis, cadeiras, galáxias, etecetera. E dizia-o em alta gritaria a todos os que o quisessem ouvir. Não eram muitos.

Uma vez explicaram-lhe que as viagens espaciais são longas e aborrecidas, que as tripulações são formadas normalmente por dois tripulantes de, normalmente, sexos opostos, que a única coisa que eles têm para fazer nessas viagens é dar uma olhadela aos instrumentos de bordo de vez em quando, digamos, uma vez por mês, pois o computador encarrega-se de tudo, e que no tempo restante o tédio é o seu único companheiro. O tédio e os objectos inanimados, os painéis, cadeiras, galáxias, inumanidades. Assim, que melhor passatempo que o sexo?

O velho não quis compreender. Dizia que era imoral. Puxou da sua forma de razão, puxou de livros sagrados, puxou de leis poeirentas.

Então desafiaram-no a fazer uma pequena viagem, só até à Pequena Nuvem de Magalhães. Aceitou o desafio, se bem que relutante.

Dois meses mais tarde, a meio da viagem, a nave explodia em paroxismos de gozo.

 

acerca do conto...
Título: Nos Confins
Data: 05/11/98
Autor: Jorge Candeias
e-mail: [email protected]