Retrocedersimetria: ficção
Página de web fiction da SIMETRIA...
eu pecador me confesso
por Paulo Oliveira <[email protected]>

- Querem que eu confesse? Eu confesso... além disso já estou farto desta merda toda... Querem?!... eu confesso, matei-a , sim, matei-a... mas já agora, têm de saber da história toda desde o principio... posso parecer louco mas não o sou... e só os loucos matam sem razão, não é?

Estava sentado em frente a uma secretária branca numa cadeira da mesma cor. Tinha as palmas das mãos assentes no tampo onde se notavam algumas manchas de suor. Se, se olhasse do angulo certo, e ajudados pela luz fluorescente de uma calha que descia do tecto alto que só iluminava o centro da sala, via-se uma miscelânea de impressões digitais, linhas da vida e do coração das duas mãos, gravadas a suor na fina camada de pó que existia no tampo da secretária. O conjunto de todos aqueles traços tinham a beleza de um quadro, pois quase se podia ler neles qual tinha sido a palavra, o pensamento ou o medo que o dono daquelas mãos tinha dito, pensado ou sentido. Sob as mãos estavam algumas folhas A4, com o cabeçalho timbrado a azul, sobre as quais repousava uma esferográfica barata. Tinha a extremidade mordiscada, como que se o seu utilizador normal fosse uma daquelas pessoas a quem Freud atribuía recalcamentos sexuais na infância e que passavam o resto da vida a meter tudo o que apanhavam à mão na boca.

A camisa de flanela grosseira, tinha dois tons de azul, um mais claro no peito e nos ombros e outro mais escuro nos sovacos, o suor conquistava cada fibra de tecido lenta e seguramente como um conjunto de cavadores transforma o prado verde em castanho húmido, torrão a torrão, fibra a fibra, passo a passo, como numa grande marcha, como um vírus que se entranha num corpo em todas as direcções. Os braços eram grossos e peludos, tão peludos quanto deixavam ver o peito os três botões desabotoados da camisa.

Os pelos subiam pelo pescoço acima e só paravam a um dedo dos olhos, emaranhados numa barba também negra, o cabelo era curto e cortado todo por igual. Tudo isso dava aquele ser um ar animalesco, pois, no meio de todos aqueles pêlos apenas se viam uns olhos cinzentos, raiados de sangue, orlados por umas olheiras vermelhas, plantados na base de uma testa anormalmente curta.

- Sim, matei-a - ao falar mostrou a dentição incompleta e cariada, como as ameias de um castelo onde a rocha é invadida por liquens negros e amarelos - matei-a, mas a culpa foi só dela... eu avisei-a...mas ela não me quis ouvir, depois... olha... a culpa foi só dela...

Os olhos apesar de estarem raiados de sangue e envoltos num rubor quase negro mostravam uma calma, uma calma tão grande como a de uma criança que conta um história, enquanto espera uma prenda que já sabe que não lhe vai fugir. Os dois ao mesmo tempo desviaram-se da sua frente e embateram num espelho pendurado na parede no seu lado esquerdo. Era grande, e viu-se sentado a olhar para si próprio, sorriu para o espelho e humedeceu os lábios, os pêlos que lhe entravam na boca ficaram brilhantes.

Voltou de novo a cabeça para a frente, mas os olhos ficaram presos no seu reflexo, adivinhava olhares por detrás desse vidro, sabia que estavam lá a observa-lo, e isso, ao contrário de todos os dias que já vivera e que recordava, dava-lhe agora um estranho prazer, como um leão enjaulado, que apesar de não saber que não pode fugir, goza com os olhares de medo de quem o observa do outro lado das grades cada vez que ruge.

- Matei-a - fechou os olhos e levou as mãos à cara - já não aguentava mais, foram quarenta anos, vocês não sabem o que é isso... quarenta anos... uma vida... uma vida...

Apesar de ter as mãos sobre o rosto, via perfeitamente os olhos que o fitavam alguns metros à sua frente, sempre os tinha visto, sempre o tinham seguido para todo o lado, mesmo enquanto dormia, sabia que estavam lá, apareciam-lhe em sonhos, a olhar, a ver, a observar tudo, a rir dele. Daria tudo, tudo para poder apagar, poder cegar de uma vez por todas aqueles olhos que o torturavam, que o torturaram desde sempre.

- Eu não queria fazer aquilo... mas vocês não sabem o que são quarenta anos... - a sua voz desceu de tom como quem desce um degrau numa escada e pára, ouviram-se soluços e algo parecido a um choro, mais parecia uma oração de um Australopitecus para a fogueira à sua frente, um misto de prazer pelo calor do fogo, admiração pelo azul e amarelo da chama e medo da hora em que o tigre dentes-de-sabre que morava para lá da pequena caverna entrasse, um som gutural, rouco, sincero. Pouco a pouco a respiração normalizou-se, levantou o olhar do tampo da mesa e fixou de novo as cadeiras à sua frente, os olhos estavam secos.

- Posso? - duas luzes cinzentas decolaram-se numa íris vermelha e fitaram o maço de cigarros que estava pousado em cima do gravador no outro lado do tampo da secretária. O cigarro surgiu-lhe na mão aceso com uma rapidez que ultrapassava a velocidade de um olhar normal.

- Obrigado...

Sorveu o fumo e a ponta do cigarro tornou-se incandescente, formou-se um halo verde à sua volta que logo foi empurrado para longe por uma avalanche de fumo, para de seguida nascer de novo e voltar a ser empurrado.

- Desde que me lembro que ela me fechava naquela dispensa... e vinha gente, vinha gente... pessoas que ficavam na cozinha a noite toda, a gritar... a gritar e a gemer, e eu fechado no escuro... por vezes tinha vontade de ir à casa de banho... mas não podia sair porque a porta tinha o fecho por fora e... e eles estavam logo do outro lado, fazia mesmo ali nas calças, ficava a cheirar mal até de manhã, isto quando não ficava lá dois ou três dias fechado. Nessas alturas os gritos e os gemidos prolongavam-se dia e noite, e eu não conseguia dormir, os gritos nunca paravam... era como se torturassem alguém, mas não sei se, se consegue torturar alguém tanto tempo, porque os gritos eram sempre das mesmas pessoas, as mesmas vozes, reconhecia-as nem que fosse daqui a cem anos. E batia-me, sempre me bateu, lembro-me que uma vez me bateu por eu ter feito nas calças numa daquelas noites, deu-me tantas que fiquei de cama dois dias... dois dias...

O seu corpo retesou-se e o cheiro acre da urina sentiu-se no ar rarefeito da sala, algumas gotas pingaram da cadeira branca para a madeira velha do chão. As mãos tremiam-lhe, era um tremor constante como tremem as filmagens do inicio do século, não era de frio nem de medo, era tremer só, pura e simplesmente tremer. Os olhos levantaram-se na direcção das duas cadeiras brancas três metros à sua frente para logo desceram até ao tampo da secretária com um brilho de vergonha.

A cinza já tinha tomado conta de meio cigarro mas apesar do tremor ainda não tinha caído. Era como se cada movimento para a esquerda equilibrasse o subsequente para a direita e assim sucessivamente, tal como o equilibrista mantém um prato dois metros acima do nariz com uma cana, todo ele treme mas o prato está parado, suspenso no ar, tão seguro como se estivesse pousado na mesa de banquetes de um castelo.

- Eu não queria fazer aquilo... - soluçou - mas já não aguentava mais - não era possível viver mais assim... eu não queria....

A mão direita pousou na secretária, parou de tremer de repente como uma bandeira desfraldada perante a falta de vento e pela primeira vez o fumo subiu calmamente em linha recta na direcção do tecto. Quando a cinza caiu na madeira branca já tinha o comprimento do cigarro e quebrou-se em mil pedaços como uma garrafa no chão de uma cozinha. Ele notou, pois a cinza ainda lhe embateu na mão. Foi como se despertasse de um profundo sono. O resto do fumo perdeu-se na escuridão para lá da calha.

Levantou os olhos embaraçado, parecia que tinha dito um palavrão na reunião das cinco, numa mesa onde estão três tias a beber calmamente o seu chá. Com um relance certificou-se que ninguém das cadeiras à sua frente se tinha apercebido. Debruçou-se sobre a mesa, pousou os cotovelos e a cinza ficou entre os braços e o peito, baixou a cabeça que ficou apoiada entre as duas mãos e soprou discretamente. Um ar quente e fétido empurrou todos os pedaços de cinza para a borda da mesa e lançou-as no precipício que ia até aos tacos velhos do chão. Mas na mesa húmida formou-se um estranho desenho, uma estrela de cinco pontas, tosca, na confusão e na sujidade deixada pelo suor. Há medida que as pequenas cinzas iam sendo arrastadas para o vácuo nasceu um pentagrama velho e amassado, algo que talvez tenha estado sempre ali, algo que teria de nascer naquele preciso segundo, mas ele não viu, nem ele nem ninguém. E quando recolheu os braços e se reencostou de novo na cadeira, o tecido da sua camisa ao arrastar apagou a imagem exactamente três segundos após ela ter nascido.

- Mas ontem à noite... ontem à noite... foi ontem, mas custa lembrar-me de como tudo se passou... foi tudo tão rápido, tão confuso... - agarrou no maço de cigarros, tirou um e acendeu-o, desta vez não pediu, nem sequer se dignou a olhar para a sua frente, apenas os olhos se desviaram e foram pousar de novo na parede lateral, no espelho.

- Sabiam que ontem foi lua cheia? Não sabiam, pois não? Foi lua cheia, ela sempre fazia aquilo nas noites de lua cheia, todos os meses... todos os meses, durante sete dias seguidos aquilo se repetia. Voltou a fechar-me na dispensa e antes da meia noite voltaram a entrar lá em casa aquelas pessoas... ouvi-as falar durante alguns minutos, depois recomeçaram aqueles gemidos e aqueles gritos horríveis... ainda tentei dormir mas não consegui... só queria desaparecer dali... a cabeça doía-me muito, mesmo muito... quase que me lembro de cada batida do coração que no latejar na cabeça quase me levava à inconsciência... - o cigarro apontava para o tecto preso entre o médio e o indicador da sua mão esquerda, depois de aceso não lhe tinha tocado, e à medida que o fumo se desvanecia no ar a cinza caminhava inexoravelmente em direcção ao filtro - só queria desaparecer dali... queria que o dia chegasse depressa para tudo acabar, pelo menos com a chegada do sol poderia dormir... mas aquela noite não foi igual às outras... após algumas horas ouvi uma voz rouca dizer, " vai busca-lo, é hoje o dia... ", gelei por completo quando a porta da dispensa se abriu e deixou entrar um estranho perfume, uma mistura de rosas e qualquer coisa em putrefacção... - engoliu em seco - ... sem saber porquê ou por quem, fui arrastado para o centro da cozinha parecia que mil mãos me apertavam os pulsos e os tornozelos, a gritaria era ensurdecedora. Vi-me de repente no meio de um circulo de velas vermelhas onde estava desenhada uma estrela de cinco pontas... à minha volta andavam vultos, não consegui distinguir ninguém, só vultos... sentia os seus olhares e para onde quer que me virasse havia sempre um vulto... e outro, e outro, e outro...

Voltou a recolher a cabeça entre as mãos e recomeçou a chorar, o cigarro há muito apagado e a cinza ficaram abandonados no tampo da secretária, como que se nunca tivessem existido para ele.

- Foi então... foi então que ela falou, não consegui identificar o sitio de onde vinha a voz... só via vultos, parecia que a voz dela estava em todo o lado, era rouca, não era nada parecida com a voz que sempre conheci à minha mãe nos poucos momentos que a considerei como tal... e disse..., " depois de tantos anos, chegou a hora de regressares ao lugar de onde nunca devias ter saído... chegou a tua hora..., " depois falou durante muito tempo numa língua estranha que eu nunca ouvi, sempre secundada pelos murmúrios dos vultos que nunca paravam de pairar à minha volta...

Levantou a cabeça, quase com altivez, as mãos deslizaram para o maço de cigarros, tirou outro, acendeu-o e depois de expirar uma curta baforada de fumo a sua mão foi pousar calmamente em cima da cinza e do filtro que tinham caído um minuto antes na madeira lacada onde se apoiava. Os olhos tornaram-se vagos tal como uma paisagem coberta por uma ténue neblina.

- Sei que não me conseguia mexer, estava gelado, estava paralisado... como que se aqueles olhares que eu não via me prendessem e me pregassem ao chão... depois de muito tempo, não sei quanto, fez-se silencio... e eu não aguentei mais e molhei as calças... sentia as respirações cada vez mais aceleradas em meu redor... sentia uns bafos nauseabundos que ao invés de me aquecerem me gelavam cada vez mais... e soube que ia morrer... senti que ia morrer... vocês nem sabem o que é isso, nem imaginam o que é saber que se vai morrer... lembro-me que na altura vi isso como um alívio... mas eu não queria morrer, não queria morrer... não quero morrer porque sei que irei para aquele sitio horroroso de que ela falava sempre - voltaram a ouvir-se soluços, só que desta vez como o matraquear de um comboio a alta velocidade sobre carris de ferro.

- Então lembro-me que gritei, gritei bem alto... sei que saí do circulo e lembro-me do cheiro da cera quando as velas caíram no chão... lutei... lutei... lutei com muita força, com toda a força... nem sei onde fui arranjar tanta força... - a voz extingui-se como se apaga um fósforo quando a madeira acaba, muito suavemente. Os olhos abriram-se muito e mostraram um olhar de criança - ...não me lembro, juro que não me lembro de mais nada... juro por tudo que não me lembro de mais nada... agora deixem-me dormir por favor... tenho que dormir...

Encolheu-se na cadeira com o queixo encostado ao peito e com os braços a envolverem-lhe a cabeça, como quem se protege, o corpo era apenas trespassado por tremores regulares, espaçados de alguns segundos e ouvia-se o soluçar no meio dos seus membros peludos. Na mesa o gravador, as folhas de papel timbrado e a esferográfica e os restos de dois cigarros descansavam alheios ao peso da atmosfera, ao cheiro acre da urina misturado com o forte odor a suor e com o fumo dos cigarros, um estranho perfume tinha-se assenhorado da sala.

Levantou a cabeça e espreitou, os seus olhos pousaram de novo no espelho na parede à sua esquerda e depois de observar alguns momentos voltou a recolhê-la ao calor e segurança dos seus braços.

- Nunca vi nada assim

- Achas que foi ele?

- Não tenho a menor duvida, já estou aqui há tempo suficiente para reconhecer um assassino quando vejo um...

- Porque é que o deixas-te ali sozinho?

- Não sou de ferro, já estamos ali há sete horas a tentar tirar-lhe uma palavra, e nada, o gajo não abre o bico. Nem com falinhas mansas, nem com porrada... nem ài, nem ui... nunca vi nada assim...

- Mas ele parecia que estava a falar sozinho agora mesmo.

- Talvez, mas também de um louco, uma das coisas que se espera é que fale sozinho.

Estavam os dois defronte de uma grande janela de vidro baço, estavam habituados ao outro lado do espelho, dava-lhes uma sensação de segurança e impunidade, era bom, era quase como um vouyer que espreita a sua vizinha nua, tinha um não sei quê de lascívia. Na sala contígua uma figura estava encolhida em cima de uma cadeira.

- Achas que vamos conseguir tirar alguma coisa dali?

- Não sei...

- Mas se foi ele temos que arranjar maneira de meter dentro...

- Sim, mas se ele não confessar é difícil, é que não temos mais nada, nem testemunhas... é louco, é um facto, mas no pé em que estão as coisas se ele não disser nada vai ser difícil, e como é que se prova que uma criatura daquelas mata a própria mãe? Diz-me lá tu? Como é que vamos fazer acreditar a um juiz que aquela pobre criatura matou uma velha de oitenta anos, retalhou-a, arrancou-lhe os olhos, o fígado e o coração. Foda-se!! Aquela casa até metia impressão, até no tecto havia sangue, os intestinos estavam espalhados por todo o lado... nunca tinha imaginado que fossem tão compridos. Já vi gajos com as tripas de fora, mas assim nunca... parecia que tinham metido uma granada no cu da velha, até a cadeira de rodas estava toda partida...

- Os vizinhos?

- O costume, não viram nem ouviram nada, disseram que já não o viam há semanas, aliás, ele só ia a casa de tempos a tempos e a mulher que ia lá todos os dias cuidar da velha diz que ele é uma jóia de pessoa, dócil como um cachorrinho, consegues imaginar aquilo além dócil?

Os olhares entraram de novo através do espelho para dentro da sala e pousaram nele, como que pressentindo estar a ser observado ele fitou o espelho, o seu olhar adquiriu um estranho brilho. Os dois detectives do outro lado sentiram um calafrio, apesar da protecção do espelho, apesar de saberem que ninguém os podia observar de dentro da sala de interrogatórios, sentiram um arrepio nascer na base da coluna vertebral e espalhar-se pelo resto do corpo, dando-lhes uma sensação de desconforto para a qual nenhum deles encontrou justificação. Talvez por isso, não disseram nada um ao outro, e além disso, não ficava nada bem a um policia ter medo de olhares de um pobre louco fechado numa sala de onde nem sequer os podia ver.

- O mais certo é ele sair daqui a umas horas...

- Mas tu disseste que tinhas a certeza que tinha sido ele.

-Pois tenho! Mas o que é que tu queres que eu te faça, não há provas, e não havendo provas não há crime, mesmo que ele tenha ocorrido. Esta é uma das maravilhas da nossa querida justiça, tem pés de barro, mas isso tu já sabes devias saber, já estás aqui há uns anos, quantos? Sete?

- Seis e meio. Mas se de facto foi ele deve haver alguma prova...

- Pois...

- Olha! Lá está o gajo a fumar outra vez . Já reparaste que ele acende os cigarros e não os fuma? Parece que adormece e eles ardem sozinhos até ao fim.

- O maço não é meu... foi o Carlos que o deixou ali...

- Olha! Lá está ele outra vez a resmungar, o que será que diz? Gostava de ser mosca para poder ouvir a conversa...

- Eu não. Já estou farto de olhar para aquele anormal, e além disso, aquele maluquinho não deve dizer nada de jeito, pode ser que se lembre de ligar o gravador e confesse, não era má ideia.

- Quando é que vais voltar para lá?

- Vou dar-lhe mais dez minutos, depois vou picar-lhe mais um bocado o miolo... vou arranjar uma testemunha - piscou o olho - vou dizer-lhe que mesmo que confesse não vai dentro, porque nenhum juiz o condenaria, vou cantar-lhe a canção do inimputavél. Ele já andou vários anos em tratamento psiquiátrico, esquizofrenia aguda, sabias?

- Não. Ou melhor sabia, mas não sabia que era esquizofrenia aguda, isso é mau, não? Pelo nome e pelo aspecto deve ser uma bela doença.

Sorriram os dois, conseguiram afastar um pouco a sensação de desconforto que agora parecia pairar no ar como uma névoa invisível, que se cheirava e se colava à pele.

- Queres vir conhecer o bicho?

Gaspar hesitou, não tinha vontade nenhuma de entrar na sala, mas o sim saiu-lhe automaticamente mal o outro acabou de formular a pergunta.

- Óptimo, então vais ter a oportunidade de conhecer um esquizofrénico agudo, mesmo na nossa profissão não é todos os dias que se conhece um, pelo menos diagnosticado.

- Tenho a certeza que vai ser um prazer.

Entraram os dois na sala e sentaram-se nas cadeiras há muito vagas em frente da secretária branca. Ele tinha os cotovelos apoiados e brindou-os com um olhar curioso, nem um nem outro lhe conseguiram fitar os olhos mais que três segundos.

- Vá lá César - começou Santos - sabemos que foste tu... já apareceu uma testemunha e tudo, ou porque é que tu pensas que eu te deixei em paz durante tanto tempo? De certeza que não foi para tu fumares cigarros... - quando acabou, fez aquela cara de menino de coro que treinava todas as manhãs ao espelho.

- Quero ir-me embora daqui... - a frase saiu-lhe como um lamento como uma criança aterrorizada quando consegue recuperar o fôlego e falar.

- Diz lá pá... porque é que mataste a tua mãe, se ela te fez mal ninguém te pode acusar de nada... sabes que até podes nem ir preso? Arranjamos uns papeis dos médicos em conforme sofres perturbações e que a tua mãe te maltratou e ninguém te pode condenar. Mas para isso tens de contar toda a história, percebeste? Vá lá... diz toda a verdade e estás praticamente safo. - a voz soou-lhe como a de um pai que tenta desviar a atenção do filho de três anos de uma montra de brinquedos em plena época natalícia.

- Por favor... quero ir-me embora daqui - soluçou e fungou de novo, mas devido a uma súbita transformação o rosto adquiriu uma frieza diabólica. Fitou os dois policias à sua frente com um ódio dificilmente transmissível por palavras, ambos sentiram os cabelos levantarem-se, ao mesmo tempo um estranho arrepio trespassou-lhes os ossos. Victor Santos desejou que aquele caso tivesse sido atribuído a outro, há dois dias que não falava à mulher e o namorado da filha parecia alguém que ele tinha preso a semana anterior. Gaspar arrependeu-se de ter trocado um relatório que andava a adiar há alguns dias por uma volta pelas salas de interrogatórios para desanuviar.

César recomeçou a chorar, mas as lágrimas não lhe davam nenhum ar de vitima, e não tranquilizaram de maneira nenhuma os dois homens que tinha sentados à sua frente. Gaspar apercebeu-se pela primeira vez, após longas horas passadas sentado naquela cadeira, que era um lugar desconfortável, sentiu todos os relevos que uma máquina qualquer tinha marcado a alta temperatura no plástico, sentiu-os com as nádegas, com os lombares e remexeu-se disfarçadamente aproveitando para respirar fundo. Mas o desconforto não passou e o silêncio pesou ainda mais.

As três pancadas soaram secas e espaçadas na madeira velha da porta, tal como três tiros muito perto numa noite escura. O efeito nos dois policias foi o mesmo, um estremecimento, um espasmo e uma taquicardia brutal, quase que iam caindo das cadeiras, teria sido uma boa cena para um filme cómico mas ninguém sorriu sequer.

Apenas César os fitou, imóvel, Gaspar e Santos notaram a convulsão um do outro mas fingiram não ver nada, aliás, um policia não treme, muito menos olhares de um pobre louco indefeso, sentado numa sala de interrogatórios. Ambos sabiam que não iriam comentar nada daquela situação a ninguém. Não tinha grande importância, mas era motivo suficiente para os outros falarem. Se tivesse acontecido só a um, seria o motivo de conversa no bar no fim daquele turno, mas aconteceu aos dois e nem um nem outro gostavam de ser gozados, era uma sensação muito má ser o alvo das atenções naquele bar no fim de turno. Como daquela vez em que um novato tinha algemado um cadáver, houvera um tiroteio num bar e quando a policia chegou já a confusão tinha acabado. Mas o ímpeto com que entraram lá e o espirito de missão do caloiro levaram-no a exceder-se no seu entusiasmo. Era uma história que ainda circulava, toda a gente ria quando lhe perguntavam se já tinha ido levar a " pesca " do dia à agência funerária, ou quando começavam a falar de um policia tão bom, tão bom que nem os mortos lhe escapavam, não era agradável ver a cara do pobre do rapaz.

Não é que um susto ou um estremecimento em frente de um suspeito fosse muito mau, mas já devia dar para uma ou duas noites de conversa, depois do susto e antes do alivio que não chegava ouviram-se um ao outro a comentar numa dessas noites em que a cerveja corria. " Na outra vez pá... estávamos no aquário e tínhamos apanhado aquele maluco do César, lembram-se? Aquele que fez a mãe num hambúrguer. O gajo chorava que se fartava, até já se tinha mijado e tudo... e não é que aqui o caro colega quando bateram à porta quase que caiu da cadeira abaixo...," sentiram-se os dois aliviados por terem sentido o mesmo, ao mesmo tempo.

- Detective Santos, estão a chama-lo à secretaria - a cara voltou a desaparecer deixando a porta entreaberta, Santos não esperou pela segunda chamada, levantou-se rodou os calcanhares e avançou em direcção da porta.

- Espera aí, eu também vou...

César ficou sozinho de novo na sala e aproveitou para fazer uma nova investida ao maço de cigarros, agora já com papel amarrotado.

A caminho da secretaria, respirando um ar puro tendo em conta as centenas de cigarros que se fumavam por dia naqueles corredores, as palavras começaram a fluir.

- Aquele gajo vai escapar-se... é pena... - Gaspar vinha ofegante.

- Pois é...

- Tens razão, pode ser maluco, mas lá que tem ar de assassino, isso tem! Agora nem eu tenho duvidas... - Santos olhou-o de soslaio.

- Mas não podemos fazer nada, daqui a umas horas temos de o mandar embora, daqui a duas semanas já ninguém se lembra do caso, daqui a um par de meses está arquivado. Temos de facto uma profissão aliciante.

Entraram na secretaria, havia um corredor delimitado por um balcão metálico, do outro lado três secretárias com velhas máquinas de escrever, daquelas que após se premir uma tecla tem que se retirar o braço pois ficou preso à fita.

O fato Hugo Boss cinzento estava com o cotovelo apoiado ao balcão. Dentro dele um homem, não devia ter mais que vinte e cinco anos mas tinha cara de dezassete. Fumava um cigarro comprido que nenhum dos detectives conseguiu identificar a marca, talvez tivesse sido oferta na compra do fato.

Levantou ligeiramente a cabeça dos sapatos envernizados, tinham um brilho baço sob a luz fluorescente. Os olhos acompanharam a entrada dos dois homens na secretaria, primeiro com um olhar de reconhecimento depois com um sorriso cínico.

- Olá, muito boa noite senhores detectives! Então está tudo bem? - a voz soou-lhe tão falsa como um pitch de um vendedor de rua.

Aproximaram-se e pararam a cerca de dois passos do jovem, magro e mais alto que eles, inalaram o intenso perfume que pairava na atmosfera já de si pesada e torceram o nariz. Trocaram um olhar de cumplicidade, como que entra numa casa de banho nauseabunda e não troca uma palavra.

- Vim por causa do meu cliente - ignorou o desprezo de que estava a ser alvo como quem ignora a relva que pisa enquanto foge de um cão raivoso - Sabem? O César. É que como devem saber têm-no preso preventivamente há tempo demais... o pobre homem deve estar aterrorizado - fez uma pausa e gostou do eco que a sua voz grave e segura fez na velha sala - tenho já aqui os papeis, e ele vai sair já!

A frase soou não como uma afirmação, mas como uma ordem, o sorriso cínico mostrou uns dentes imaculadamente brancos e perfeitos. O seu fato pareceu mais brilhante em relação ao fato vulgar de Santos, e às calças de ganga coçadas e à camisa azul de Gaspar.

- Não vales mesmo nada... - articulou Gaspar por entre os dentes, no silêncio da noite a frase foi tão perceptível como a de um pastor numa homilia de Domingo.

- Presumo que tenha uma esferográfica - disse retirando uma caneta Parker dourada do bolso do colete e colocando-a sobre uns impressos que já estavam no balcão.

- Mas ele matou-a, você tem consciência disso, não tem? - a voz de Gaspar soou calma mas denotando falta de convicção, tal como um arauto da liberdade fala para o seu interrogador com a certeza que passados alguns minutos vai começar a ser torturado.

- Meus senhores, eu tenho o meu trabalho - recomeçou o advogado - os senhores tem o vosso, na minha opinião todas as pessoas deviam fazer o seu trabalho o melhor possível. Mas infelizmente nem todos conseguem, nem todos conseguem cumprir capazmente a missão de que foram incumbidos, é pena...

Santos arrastou os impressos pelo balcão e a caneta dourada ficou no mesmo sitio, não mexeu à saída dos papeis. Retirou uma esferográfica do bolso, leu e rubricou as três folhas.

- E, além do mais, quem lhes disse que o mundo era cor de rosa, enganou-os redondamente - dizendo isto, agarrou nos impressos, rodou os calcanhares e saiu.

Antes de cruzar a ombreira da porta e sem se voltar, ainda falou.

- Estou lá em baixo, na porta de entrada, daqui a três minutos o meu cliente está lá comigo. - ouviram-se depois os passos ruidosos que aqueles sapatos fizeram ao descer as escadas de mármore que conduziam ao rés do chão, como se fosse o matraquear de um par de sapatos de salto alto de uma mulher que depois de por fim a um amor de quatro anos, ainda sai de nariz empinado.

Victor Santos voltou-se para a secretaria vazia, após alguns segundos deu um murro no balcão, ecoou como uma explosão longínqua numa guerra.

- Filho da puta!!! - olhou a sala durante alguns segundos, fez meia volta e saiu pela porta oposta. Gaspar segui-o sem pronunciar uma palavra, como um cão segue o seu dono, não importa para onde vá.

Pararam junto a outro balcão, este de madeira e com manchas de fundo de copos e grãos de açúcar espalhados por todo o lado.

- Um whisky - a voz monocórdica de Santos fez saltar um velho gordo que dormia sobre um jornal, numa mesa do lado de dentro do balcão. Fingiu acabar de ler a noticia, levantou-se e um copo com um liquido amarelo surgiu-lhe na mão. Uma rapidez deslocada em todo o torpor que emanava aquela massa humana, cento e vinte quilos ou mais.

- E tu? - uma voz ensonada e uns olhos semi abertos fitaram Gaspar inexpressivamente.

- O mesmo - o pedido saiu-lhe como a um rapaz da aldeia que pela primeira vez entra num café na grande cidade, sem convicção. Beberam em silêncio, Gaspar voltou as costas ao velho gordo, apoiou os cotovelos no balcão e olhou as cinco mesas. Santos continuava a olhar para o fundo do copo. Numa das mesas uma mulher que devia andar pelos cinquenta ordenava uns papeis. O peito era grande e uma blusa branca e decotada que deixava antever um sutiã rendado. A saia de fazenda cinza deixava ver logo acima dos joelhos umas pernas gordas e depiladas que acabavam nuns sapatos de salto alto pretos. Tinha grossos anéis a imitar ouro em todos os dedos, excepto nos polegares, uma enorme corrente dourada enrolava-se-lhe ao pescoço e deixava cair um penduricalho disforme por entre os seios. Os brincos de joalharia fina caiam-lhe das orelhas e moviam-se ao ritmo da cabeça como se fossem um prolongamento do próprio corpo. Uma maquilhagem exagerada sob a luz fluorescente dava-lhe um aspecto plástico bolorento. Os óculos na ponta do nariz serviam de filtro aos olhos que percorriam rapidamente os papeis. De vez em quando fazia uma pausa e sem mexer a cabeça, os seus olhos pairavam um pouco sobre as lentes e varriam toda a sala. Com um olhar atento e perscrutador, nada lhe escapava, uns olhos de águia como só alguém com cinquenta anos de coscuvilhice tem. Observou os dois recém chegados, os papeis continuaram a mexer-se nas suas mãos mas ela não os via.

- Será que fizemos tudo bem?

- Fizemos o possível, não podemos fazer milagres... o sistema é uma maquina infernal...

- Há sempre uma hipótese... - Gaspar não perdia a esperança.

- Pois é, mas se soubéssemos sempre qual é " a " hipótese provavelmente estaríamos numa vivenda à beira mar, a comer lagosta e rodeados de duas ou três mulas...

Santos escorreu o copo, não lhe apetecia pensar, estalou os dedos e olhou de soslaio para o empregado do bar. Apontou a ponta do polegar para o interior do copo vazio, perante o olhar interrogativo do velho gordo, anuiu, os dois copos foram cheios de novo.

Ouviram-se vozes distintas no corredor e o barulho dos passos foi aumentando. A mulher da mesa mexeu nos papeis mais lentamente e fixou a porta, estava no enfiamento do corredor. Observou, registou e logo baixou de novo o olhar para os impressos.

Gaspar e Santos fitaram a porta de entrada como se tudo dependesse de quem chegava. Precisavam de uma distracção que os despertasse dos pensamentos depressivos que se apoderavam deles depois de casos como este.

Entraram dois indivíduos, o primeiro trazia um fato castanho com o corte atrasado duas décadas, era baixo, não mais que um metro e cinquenta, os sapatos eram castanhos e a gravata da mesma cor unia impecavelmente as golas de uma camisa branca. Era o médico legista, de vez em quando passava por lá, as feições eram as de um cangalheiro do velho oeste, o cabelo negro muito mal aparado fazia conjunto com umas sobrancelhas, ou melhor, com uma sobrancelha espessa.

O outro era magro e alto, vestia uma bata branca que deixava ver uns jeans vermelhos por baixo, os ténis de boxeur eram azuis. No peito os botões desapertados mostravam um logotipo dos iron maiden gravado numa t-shirt preta. Os óculos à Clark Kent embaciavam uns olhos cinzentos e astutos, o nariz desproporcionado para a pequena cabeça encimava uns lábios finos. Os dentes saiam da boca como se tivessem sido espetados lá depois de todo o rosto estar construído. Devido ao seu tamanho tinha que andar sempre com a boca semi-aberta. Em cada duas frases que dizia a sua língua saía e humedecia os lábios e os seus incisivos de roedor, tal como o limpa vidros de um carro afaga o para brisas num dia de chuva.

Falava rapidamente e com uma voz esganiçada e irritante de uma puberdade nunca perdida. O médico apenas dizia, "sim, sim... hum, hum... ", quando tinha alguma aberta no discurso ininterrupto do outro. Parecia aborrecido mas tentava disfarçar.

O apodo de rato de laboratório aflorou no pensamento dos dois detectives que começavam agora a beber o segundo copo, o turno estava a acabar e ambos ansiavam por sair dali, embora nada do que os esperava lá fora fosse motivante ou melhor do que ali dentro. Raramente viam esta personagem, mesmo assim não tinham saudades nenhumas. Olharam-no com o desprezo que no exército um operacional olha um amanuense. Sabiam que no fundo era uma peça necessária à engrenagem, por vezes fundamental, mas a superioridade que lhes corria no sangue por arriscarem a vida nas ruas era mais forte.

Voltaram-se para o interior do balcão virando as costas aos recém chegados. Não havia pachorra para aturar aquele chato mais os seus grandes discursos sobre sangue, saliva, esperma e adn. O velho dormitava de novo sobre a mesma página do jornal. Pararam junto do balcão.

- Se faz favor! - a voz esganiçada acordou o empregado como se arranca um prego ferrugento de uma tábua seca com um pé de cabra - é um galão, nem quente nem frio, com três pacotes de açúcar... e para si Doutor? - virou-se para o médico e este balbuciou algumas palavras - e é uma água das pedras natural, aqui para o Sr. Doutor, num copo bem lavado... não se esqueça... o galão nem é quente nem é frio, e são três pacotes de açúcar... - voltou-se para o médico, respirou fundo e passou a língua nos dentes.

- Sabe Doutor, cada vez estou mais maravilhado com os intestinos, nunca são iguais, de cada vez que aparece um cadáver a panóplia de cores e de formas é infindável . E até pelos intestinos se pode ver quem o morto foi, e o que fez na vida. É como o registo da história do homem ou da mulher que tiveram a honra de albergar tão belo orgão.

A mulher na cadeira torceu o nariz e o médico fez um esgar muito dissimulado, voltou-se para a garrafa que estava em cima do balcão e verteu o liquido no copo. O rebentar das bolhas de gás ouviu-se nitidamente no silêncio para logo ser interrompido pelo fervilhar do leite a ser aquecido pelo vapor.

- Ah!! Ah!! Senhores detectives!!! Ainda bem que os encontro - a palavra senhores saiu como se eles já tivessem passado de prazo - É incrível, vinha à vossa procura e encontrei-os.

Eles fizeram um olhar o mais enfastiado possível e rodaram a cabeça na direcção da voz. Os seus corpos continuaram voltados para o velho que já dormitava de novo.

- Tenho uma novidade para vocês... - Santos e Gaspar entreolharam-se.

- Espero que seja curta - murmurou Gaspar, o amargo do whisky que sentia na boca já o começava a acalmar.

- Sabem? - continuou - os senhores sabem... - baixou a voz, esta soou como se fosse fazer uma confidência, eles inclinaram-se um pouco na sua direcção e a mulher da mesa levantou os olhos dos impresso e olhou em frente - estive a fazer umas investigações por conta própria e descobri umas coisas interessantes - falou como um mercenário prestes a contar o seu ultimo contrato e a língua volteou de novo sobre os dentes. Gaspar fez um ar aborrecido e escorreu o copo, Santos aproximou-se um pouco.

- Estive a trabalhar lá em baixo, como devem saber nestes dias não tem havido quase nada para fazer, excepto a velha... um autêntico puzzle... ah!! É verdade tem que passar lá por baixo para verem o novo microscópio que chegou ontem dos States, é uma maravilha... aumenta um milhão de vezes... - humedeceu de novo os dentes e ficou uma bolha de saliva no lábio superior, rebentou quando recomeçou - mas não era isso que eu queria dizer... o corpo humano é uma máquina fabulosa, muito complexa como devem calcular... são biliões e biliões e biliões de células pequeninas a trabalhar para o mesmo fim, manter-nos vivos, é um espectáculo.

Santos acendeu um cigarro, Gaspar sacou-lhe o maço e imitou-o, pensou que afinal de contas era melhor aturar este que o maníaco do César ou o nojo do advogado.

- Estão sempre a nascer e a morrer células, por exemplo agora que vocês estão a fumar, estão a matar células e é pena que apesar de eu não fumar, também esteja a fumar graças a vocês...

Gaspar pensou que seria óptimo que o fumo engasgasse aquela voz de gralha, expirou disfarçadamente na sua direcção.

- Bem - tossiu um pouco para reforçar o seu ponto de vista - como estava a dizer as células são alimentadas pela linfa que lhes dá os nutrientes, ou a paparoca como quiserem... e o sangue que com os glóbulos vermelhos que tem hemoglobina que fixa o oxigénio, e lhes leva esse mesmo oxigénio para elas poderem respirar por assim dizer, ih, ih, ih... - até o riso era parecido com o de um rato pensaram os detectives com uma sincronicidade que os transcendeu - ora bem, a parte do oxigénio agora não interessa, além do mais vocês estão a nicotiza-lo, ih, ih ih... restam-nos os nutrientes e ora bem!! Como e onde é que o nosso magnifico corpo vai buscar os nutrientes?? É à comidinha, e agora vamos ao que interessa...

Até que enfim, Santos pensou tão alto que os seus lábios se mexeram ao de leve.

- E o que interessa é... tcham, tcham, tcham tcham... o aparelho digestivo... ora bem, o homem ou a mulher conforme o caso, precisa de se alimentar... a alimentação, lipídios, hidratos de carbono, proteínas, etc, etc... tudo sob a forma de comidinha... tudo isso é comido, ou deglutido se preferirem, e cai no estômago e aí vão ficar cerca de duas horas a serem cozinhados pelo suco gástrico, que é aquele liquido que quando temos o estômago vazio por vezes nos provoca cólicas. Mais tarde passa para o intestino delgado que chega a ultrapassar os doze metros, Sabiam??

Santos engoliu em seco, sim sabia, aliás em casa da velha até lhe tinha parecido mais, deixou cair o cigarro já apagado para o cinzeiro metálico, olhou para o relógio e encarou o jovem rato de novo.

- Aí são-lhe retirados os nutrientes, que se escapam pelas finas porosidades, depois passa para o intestino grosso, recto... ânus... e por fim liberdade...

- Agora podes dizer-nos aquilo que querias - a voz de Santos soou como um murro no balcão, Gaspar levantou o sobrolho.

O semblante do rapaz não se alterou, os dentes continuaram do lado de fora e foram humedecidos mais uma vez, esboçou uma careta que a muito custo se apelidaria de sorriso.

- Estou aqui para lhes dizer que nem sempre esses processos se desenrolam normalmente.

- E??

- E... o vosso amigo, aquele que tem lá em baixo dentro do aquário, teve alguns distúrbios, distúrbios que eu tive o cuidado de investigar - a voz tornou-se sussurrante - quando chegou, vomitou a cela toda, lembram-se?

Gaspar lembrava-se, tinha lá passado no inicio do turno, a cela já fora limpa, César estava a ser interrogado mas o cheiro era simplesmente agoniante.

- Ora bem... tive a liberdade de investigar por conta própria e encontrei isto... - sacou um pequeno saco de plástico do bolso esquerdo da bata.

No pequeno saco estava um olho, um olho azul. Quando o saco bailou, pendurado na mão, a poucos centímetros das cabeças dos detectives eles recuaram sem tirar os pés do chão. O calafrio atenuou-se quando o saco foi pousado em cima do balcão.

- Tem que dizer ao rapaz - continuou com um sorriso de vitória que mostrava os dentes até à raiz - tem que dizer ao rapaz que da próxima vez que comer os olhos da mãe os deve mastigar. E também não deve voltar a beber um litro de bagaço a seguir ao lanche.

Santos estava estarrecido, os ombros e o queixo descaídos e os olhos muito abertos, começou a surgir-lhe um rubor purpura nas orelhas e na testa. Sem dizer uma palavra saiu a correr, ouviram-se os seus pés chocar com os degraus, dois a dois. O médico legista olhava interessado.

O rapaz do laboratório abriu a boca de espanto, como se tivesse oferecido a solução de todos os problemas a alguém e essa pessoa lhe voltasse as costas e desatasse a fugir. Gaspar esboçava um sorriso de admiração misturado com uma humildade forçada que roçava a humilhação.

- Já não vai a tempo - a voz caiu como uma pedrada num charco numa tarde quente e abafada de verão, um rosto maquilhado fitava os três homens da mesa do canto - ele saiu com o advogado e com a mulher que tomava conta da mãe, há mais de cinco minutos - os olhos voltaram a atravessar as lentes na ponta do nariz, sorriu, no fim de semana, quando fosse tomar chá as amigas iriam ficar fascinadas com mais uma história.

 

acerca do conto...
Título: Eu Pecador me Confesso
Data: 14/06/00
Autor: Paulo Oliveira
e-mail: [email protected]