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os olhos de alice

por Sérgio Bernardo

Os olhos de Alice

Eram claros. De um azul que se fingia verde, dependendo da luz. Amendoados, mas não muito.

Belos. Suavemente belos os olhos de Alice. E encerravam estranho enigma aqueles olhos.

Às vezes ela se perguntava como o fenómeno havia começado. Lembrava que desde muito cedo, aos sete, oito anos, por aí, ou menos até, porque talvez antes, ungida de inocência, não soubesse avaliar o fantástico poder que trazia nos olhos.

Vou contar.

A Alice era dado saber quais as pessoas marcadas para morrer. Simplesmente porque, ao primeiro olhar, os que caminhavam em direção à morte tornavam-se invisíveis aos seus olhos. A velhinha da esquina, solitária em seu chá vesperal na varanda envidraçada, um dia sumiu diante daqueles olhos claros e levemente amendoados. Passaram-se apenas três dias e a notícia chegou à casa de Alice, na época com nove anos. Foi a certeza que não queria ter: haveria de por toda a vida saber quem estava prestes a fechar os olhos.

Alice agora vivia a véspera de completar 40 anos. Funcionária pública que estudara com bastante sacrifício, conseguira passar no concurso para a Previdência Social. Salário bom, comparado com a média brasileira, sempre aquém do mínimo. Um apartamento de dois quartos. Bem situado e mobiliado mais com bom gosto do que com ostentação (aliás, tinha hábitos bem simples). Um carro usado, mas em ótimo estado. Poucas idas ao mecânico.

Viagens nas férias com o novo namorado, pois não podia ficar o ano inteiro no mesmo lugar, nem com o mesmo companheiro. Não suportava.

Ainda assim, vida normal a de Alice, para quem até seu estranho dom acabara se tornando comum, tantas vezes sucedera.

Ao longo dos anos, previra a morte de um a um de seus familiares mais velhos: primeiro a avó Judite, sua paixão neste mundo; depois, a alguma distância uns dos outros, o avô, o pai, a tia solteira, a mãe. Antes desta, o irmão, mais velho dois anos, que certa noite enfiou a motocicleta debaixo de uma carreta.

Morte instantánea.

Há poucos dias, entrara na repartição e a imagem do chefe, cara de poucos amigos como sempre, desfizera-se logo em seguida. Um enfarto fulminante o levaria no fim daquela mesma tarde, enquanto discutia com um subordinado.

Assim a vida de Alice. Uma sucessão de acontecimentos funestos, como a de todos, mas sem a dor e a surpresa do Era inesperado. Queria ao menos poder não antecipar o choro por seus mortos, porque durante os velórios as lágrimas já haviam secado por completo. Mas que fazer? Eram seus olhos.

Naquele sábado de abril Alice acordou especialmente feliz. Escancarou a janela do quarto e respirou fundo o ar da manhã. Passou a mão na cabeça para abaixar os cabelos e se lembrou da hora marcada no cabeleireiro. Um banho rápido, mas delicioso. Perfume nos pulsos e sob as orelhas. Com um sorriso pegou sobre a poltrona o pente de madeira que fora da mãe. Então mirou o espelho. E se desintegrou na luz dos seus olhos claros.

acerca do conto...
Título: Os Olhos de Alice
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Autor: Sérgio Bernardo
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