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Newsletter EVENTOS.
eventos 2.08 (16/04/00)
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                        E V E N T O S

                  Revista de TecnoFantasia

< http://www.geocities.com/simetriaEVENTOS >
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Nº 2.08    publicação semanal e gratuita       16 Abr. 2000
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Coordenação: Luís Filipe Silva
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(Mensagem 1 de 2)


«Mais do que qualquer outro ano em toda a História, o ano
2000 é uma invenção nossa. É um bebé nosso. O que não
sabemos ainda é se será venenoso.»
  John Clute, _The Book of End Times_


CONTEÚDO

(Mensagem 1)
EDITORIAL: The Coming of Shape to Things (III)
VIDA: O Laboratório da Realidade
CULTURA: A Arquitectura do Possível
LITERATURA E AFINS: Turistas Eventuais
CIÊNCIA: O Que Sabemos Hoje e Não Sabíamos Ontem
AGENDA: Eventos & E-ventos

(Mensagem 2)
FICÇÕES E CONFISSÕES
Concurso de Ficção Primavera 2000

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Subscrições: enviar mail com subject/assunto «ASSINATURA» para:
                  [email protected]
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NOTA: A internet é o meio de educação e informação previlegiado
      do novo milénio. Neste sentido, *EVENTOS* encoraja a
      disseminação do conhecimento, autorizando a reprodução e
      envio da revista, desde que seja difundido na íntegra e
      com indicação completa da sua origem. Esta autorização
      no entanto só é válida para os artigos e notícias, e desde
      que o fim a que a reprodução se destina tiver natureza apenas
      didática - de modo nenhum deve ser difundido com fins comerciais.
      As obras de ficção aqui publicadas não estão abrangidas por
      esta permissão e são da propriedade exclusiva dos seus
      autores, pelo que a sua reprodução não autorizada é proibida.
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                         --oOo--

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EDITORIAL
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THE COMING OF SHAPE TO THINGS

Luís Filipe Silva


* Terceira Parte: Faz parte do Processo

Afirma James Gleick (lembram-se dele: o autor do «Caos»?) no seu mais
recente livro: «Faster - the aceleration of just about anything», que
investimos esforço e tempo no desenvolvimento de meios para poupar, não
horas à sociedade de consumo, não minutos, mas segundos.

Explico melhor: a tecnologia é quase sempre um engodo. O objecto mecânico ou
electrónico esconde, para os leigos ou para os que apareceram depois, um
outro propósito, que é a substituição ou melhoria do esforço humano. Por
exemplo, uma fábrica de sapatos: outrora, existiam sapateiros, que se
constituiam, como todos os artesãos, em confrarias ou associações, e que
tinham a seu cargo tudo o que se relacionasse com sapatos, desde a aquisição
do couro e da pele à produção e arranjo do produto final. Cada sapateiro
dominava por completo todas as fases do que se chamaria agora o «processo
produtivo» - ou seja, detinha conhecimento. Controlava um saber especial,
que ia transmitindo a aprendizes, que o substituiriam após a reforma ou
iriam montar sapatarias noutras lojas.

Este saber especial permitia-lhe deter um estatuto a nível da sociedade, era
respeitado por isso e conseguia utilizá-lo para ganhar o pão.

A tecnologia veio tirar isso ao sapateiro, como veio tirar a tantos outros a
primazia. Mas não por, erradamente, substituir o homem e fazer melhor do que
ele.

A tecnologia constitui na verdade, saber acumulado. A este saber, chamamos o
processo.

O processo não passa de um conjunto de instruções de transformação de uma
matéria-prima para atingir um resultado final. Pode ser um sapato, um carro,
uma casa, um depósito bancário ou uma consulta médica. Pode ser um bem ou um
serviço, físico ou intangível. Pode ser uma aula, mera transmissão de
conhecimento. A palavra-chave é que é padronizável. Feito de punhados
atómicos. E perfeitamente replicável sem grandes esforços.

Mas a tecnologia não é essencialmente algo mecânico - este formato surge
depois. As ideias são os motores das tecnologias.

E não houve melhor ideia para a sociedade de consumo do que a linha de
montagem de Henry Ford.

Uma linha de montagem de sapatos, pela sua própria natureza, acumula o saber
que um dia era detido por um punhado de sapateiros. Veja-se o corte do
couro: com base em moldes e um conjunto de movimentos mecânicos, pode
substituir-se um homem, se se tiver uma máquina que consiga seguir um
conjunto de instruções bastante simples (afinal, há pouca variedade nos
formatos dos sapatos, e pode-se reduzir a um punhado de operações bem
controladas). Veja-se a colagem da sola: tendo o formato já cosido, e a sola
já formada, numa linha de montagem basta sobrepõr um ao outro, aplicar cola
quente e aguardar o arrefecimento.

Em que ponto está então o nosso sapateiro? Bem, ele conhece o processo todo,
mas já não controla nada. Porque, mesmo que a fábrica de sapatos tenha muito
trabalho manual à mistura, mesmo até que seja tudo feito à mão, o sapateiro
foi derrotado pela «tecnologia», pela aplicação do «processo». O seu saber
especializado foi substituído por meia duzia de empregados que sabem muito
pouco sobre tudo mas muito sobre quase nada (ou seja, conhecem apenas partes
muito específicas de todo o processo, e por isso nunca chegam a constituir
«ameaça» - sozinhos não conseguem produzir nada, e porque o trabalho é
perfeitamente «mecanizável» podem ser substituídos com mínimo de formação -
ou pelo menos era assim nos «Tempos Modernos» do Chaplin): ele pode ser bom
a cortar o couro, mas não há-de ser melhor do que o empregado encarregado de
cortar couro, e que só faz isso, 8 horas por dia, 5 dias por semana. Ele
pode ser bom a coser e a colocar fivelas, mas não consegue bater a rapidez e
o hábito das duas pessoas responsáveis por isso no processo produtivo. E
mesmo colar as solas não é tão prático, pois ele tem de ser muito mais
minucioso do que o rapaz do forno: pois se nesta fase alguma coisa se
estragar no sapato, ele vai ter de começar tudo de novo - e para ele
representa uma manhã de trabalho perdido. Enquanto que numa linha de
montagem, os sapatos são tantos e tão baratos, que se um ou dois pares se
estragarem, não faz mal nenhum, tome lá outros, caro cliente. Pode o
sapateiro competir? Podem os seus dois braços concorrer com a meia dúzia de
pessoas, com a mecanicidade dos seus actos, com a inteligência do processo
decomposto em todas as suas fases? Os sapatos deles são mais baratos, embora
não sejam tão bons e cuidados quanto os do sapateiro. Este pode inventar
algo que se chama «customer relationship» e publicar newsletters e tentar
fazer amizades com os clientes quando na verdade quer é convencê-los a
deixar o consumo das massas e comprar os seus sapatos de Maior qualidade.
Mas no decurso desta transformação, algo mudou.

Perdeu poder. Perdeu para os detentores das máquinas, que não têm saber, mas
têm capacidade de investir em conhecimento. Foi assim que a sociedade trocou
as velhas artes pelo consumo de massas. Mas não havia alternativa, pois não?
Afinal, são milhões de pessoas a quererem o mesmo produto, a desejarem a
mesma qualidade. A revolução industrial daria à luz o capitalismo que daria
à luz o marxismo que daria à luz a luta de classes que daria à luz o welfare
state que daria à luz a democracia socialista que daria à luz a sociedade da
informação e assim ad infinitum.

Bem, agora os tempos estão a mudar, e os empregados tornaram-se técnicos
especializados - pois, uma vez que a máquina possui o conhecimento do
processo, é preciso pessoas que saibam mantê-la oleada e a funcionar. O
conhecimento transferiu-se e está a regressar ao homem.

Mas quem possibilitou isto foi apenas uma coisa: tecnologia. Ou seja: saber
concentrado, específico, elaborado com um determinado fim. Com o propósito
de fazer poupar horas, e não segundos à humanidade.

Mas já não é bem assim...


(continua no próximo número)

                         --oOo--

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|  - Não, não é maravilhoso. É um mundo feio. Não é como este.|
|  Anarres é todo pó e montes secos. Tudo pobre, tudo seco. E |
|  as pessoas não são belas. Têm pés e mãos grandes, como eu e|
|  o criado ali adiante. Mas não têm barriga. Sujam-se muito e|
|  tomam banhos em conjunto, aqui ninguém o faz. As cidades   |
|  são muito pequenas e monótonas, são tristes. Não há palá-  |
|  cios. A vida é monótona, o trabalho é duro. Nem sempre se  |
|  pode ter o que se quer, ou mesmo o que se precisa, porque  |
|  não há que chegue. Vocês, Urrasti, têm que chegue. Bastante|
|  ar, bastante chuva, relva, oceanos, comida, música, edifí- |
|  cios, fábricas, máquinas, livros, roupas, história. Vocês  |
|  são ricos, vocês possuem. Nós somos pobres, a nós falta-nos|
|  Vocês têm, nós não temos. Tudo é belo, aqui. Não apenas os |
|  rostos. Em Anarres nada é belo, nada a não ser os rostos.  |
|  Os outros rostos, os homens e as mulheres. Não temos nada a|
|  não ser isso, nada a não ser os outros. Aqui vêem as jóias,|
|  lá vêem-se os olhos. E nos olhos vê-se o esplendor, o es-  |
|  plendor do espírito humano. Porque os nossos homens e as   |
|  nossas mulheres são livres... não possuindo nada são livres|
|  E vocês, os possuidores, são possuídos. Estão todos na     |
|  cadeia. Cada um sozinho, solitário, com a montanha daquilo |
|  que possui. Vocês vivem na prisão, morrem na prisão. É tudo|
|  o que consigo ver nos vossos olhos... o muro, o muro!      |
|                                                             |
|      Ursula K. LeGuin, _Os Despojados: uma Utopia Ambígua_  |
|                                                             |
|                                                             |
|*EVENTOS* pergunta: quando foi a última vez que encontrou um |
| exemplo do esplendor do espírito humano?                    |
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OS LEITORES COMENTAM
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<> Uma enorme «carta» de um dos nossos leitores:

(Relativamente à provocação de EVENTOS)
>Se "*EVENTOS* pergunta: você acredita mesmo que está vivo?" eu
>respondo: sim, acredito. O metabolismo vai funcionando, vou sentindo fome,
>sono e outras vontades, vão-me nascendo cabelos brancos na cabeça, vou
>vendo a passagem do tempo. Portanto estou vivo.
>Porque vida é diferente de qualidade de vida.

(Relativamente à história sobre a descoberta do genoma humano)

>Isto é uma história mal contada. Ao que parece, isto não se é nada mais que
>um golpe publicitário, certamente habilidoso, e que teve os resultados
>esperados pela companhia: a subida do valor das acções em bolsa. É que, ao
>que parece, o que a Celera conseguiu foi a sequanciação genética de *um*
>indivíduo, o que é totalmente diferente da conclusão do trabalho de
>descodificação do genoma humano. Para começar, é preciso sequenciar a
>informação genética de *vários* indivíduos, para retirar aquilo que nos
>individualiza do que constitui o "genoma humano". Porque o genoma humano é
>o conjunto dos genes que nos definem como espécie, não como indivíduos. E
>além disso, sequenciar é totalmente diferente de descodificar. Descodificar
>o genoma significa saber onde começa e acaba cada gene, que proteína ou
>fragmento de proteína codifica e para que serve essa proteína. Ora isso é
>trabalho para décadas.

>Até porque há dúvidas sobre a validade dos resultados da Celera, uma vez
>que, aparentemente, eles usam uma técnica de sequenciação própria e ainda
>não testada o suficiente para ser considerada válida. É preciso não
>esquecer que este processo de "leitura" é feito ainda de um modo totalmente
>desastrado, em que as moléculas de ADN são partidas aos bocadinhos e depois
>são usadas algumas propriedades suas para ver que bases contêm e em que
>sequência. Isto não está isento de erros, antes pelo contrário.

(Relativamente ao anúncio do site com o filme em ascii da _Guerra das
Estrelas_)

>Não consigo. Desisto. Já fui três ou quatro vezes ao site ver se conseguia
>ver o que o tipo fez, mas de todas as vezes deu um problema qualquer com a
>Java applet. Alguém mais teve o mesmo problema?

(Relativamente ao conto «Amor Esquecido» do Gérson Lodi-Ribeiro)

>Ena!!!
>E não é que o Gerson também escreve FC "a sério", verdadeirmanete hard? E
>não é que o homem às vezes sai das suas histórias alternativas de eleição?
>E não é que ele se dá muito bem com essas escapadelas?
>A história do "Amor esquecido" é uma história muito interessante, na minha
>humilde opinião, explorando muito bem as consequências assim meio
>paradoxais da situação que foi criada no início. Embora eu duvide muito que
>aquele tipo de paciência não se torne obcessão doentia, mesmo em seres
>quase imortais ;-)
>Sem dúvida um dos contos "lodianos" que mais me agradou!


                         --oOo--
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O LABORATÓRIO DA REALIDADE
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<> AS SALAS DE AULA SÃO MUNDOS ESTRANHOS

No verdadeiro espírito da TecnoFantasia, escolas americanas têm, há vários
anos, adoptado diferentes romances e séries de ficção científica como
motivação para despertar o interesse dos alunos em matérias científicas e
sociais. O uso de histórias que decorrem no espaço exterior dão o mote para
perceber como funcionam os astros, quais as leis físicas que regem o nosso
mundo e que não se podem ignorar no decurso de uma viagem interestelar, o
que significa a relatividade e como pode influenciar as vidas de quem decide
visitar outro sistema solar a uma velocidade próxima à da luz - enquanto que
as novelas de contacto com extraterrestes permitem analisar as diferentes
estruturas biológicas, as diversas formas de contacto entre espécies, e o
problema da comunicação.

Embora nem o propósito nem a utilidade fiquem limitadas ao currículo anual,
os professores encarregados destes projectos enfrentam verdadeiros desafios
ao levar a cabo a ideia, sem causar desmotivação ou desconfiança por parte
dos alunos. Como em qualquer outro projecto, um dos riscos está no constante
equilíbrio em manter o respeito e a concentração sobre a história, tendo por
contrapartida o objectivo do ensino. Os alunos tendem a desmotivar-se muito
rapidamente se julgarem que se trata de mais uma distracção por parte de
professores que o que só querem é obrigá-los a estudar.

Em Portugal já foi tentada uma experiência desta natureza. O projecto
chamava-se «O mar e as estrelas», da iniciativa do Instituto
Franco-Português. Em colaboração com escolas francesas, cerca de uma dúzia
de escolas secundárias nacionais foram convidadas a ingressar a sua
actividade escolar corrente numa ideia que envolvia várias disciplinas,
desde as ciências às línguas, e que abrangia o ano escolar por completo.

Este projecto apresentava essencialmente duas etapas: no primeiro período,
um conjunto de cientistas convidados orientaria os alunos das diversas
escolas na elaboração de trabalhos e pesquisas relacionados com diversos
aspectos da ciência; no segundo, um conjunto de escritores nacionais iria,
tendo por base, ou não, a pesquisa entretanto terminada, conduzir os alunos
em sessões de escrita criativa e ajudá-los a construir contos que
integrariam um concurso a nível internacional, com o propósito de se
escolher os melhores, para publicação em língua portuguesa e francesa. Havia
ainda uma etapa final de viagem a França, e algumas actividades paralelas de
excursões e encontros.

O resultado foi de os contos vencedores terem tido origem, com uma única
excepção, em trabalhos desenvolvido pelos escritores de ficção científica
nacionais que integravam o projecto. Com mais ou menos sucesso, constatou-se
que o conjunto de técnicas e disciplinas envolvidas na construção de uma
história de ficção científica tinha uma aplicação bastante prática nas salas
de aula, em particular porque conseguiam atingir algo que nem os professores
nem o actual sistema de ensino se encontram normalmente preparados para
conseguir, que é a síntese e a explicação de como as diferentes matérias e
disciplinas leccionadas se juntam para explicar o mundo em que vivemos. O
interesse dos jovens é especialmente desperto por este factor.

A experiência (que decorreu em 1994/5) não teve continuação, por falta de
apoios. Nos EUA, contudo, este tipo de actividade continua a ter sucesso
junto das escolas (cada vez mais, pode acrescentar-se), de modo que, em
contraposto das histórias negativistas de associações de pais que banem
livros infantis por conterem temas perturbadores, temos o Maior prazer de
apresentar uma história que fala precisamente do contrário, e que decorreu
numa escola secundária do Texas:

«Muitas pessoas mostraram interesse num projecto nosso que utilizava o livro
_Farmer in the Sky_ de Robert Heinlein em conjunto com uma disciplina de
jardinagem. Trata-se de uma versão melhorada de um projecto que tínhamos
desenvolvido numa outra escola como parte de um programa de jardinagem mais
avançado. Os miúdos inspiraram-se nas fotografias dos resultados obtidos, em
que apareciam couves gigantes e milho com 5 metros de altura.

O novo programa de jardinagem daquela escola envolvia os alunos logo desde o
início do ano lectivo. O livro _Farmer in the Sky_ mostrou-se uma grande
inspiração, uma vez que os alunos tinham de construir um jardim a partir do
terreno duro e árido do Texas. Tal como no livro de Heinlein, era preciso
tornar o solo infértil em solo fértil. Determinados em obter os melhores
resultados possíveis, os miúdos abriram fossas com quase dois metros de
profundidade, cobrindo-as depois com areia, pedaços de madeira, estrume e
minhocas para enriquecer o solo. Identificaram-se com o Bill [o protagonista
do livro] pois, como ele, tiveram de trabalhar no duro para obter a
colheita.

Neste momento já obtiveram resultados fabulosos com a colheita de inverno,
obtendo couves do tamanho de bolas de basquetebol, cebolas e bróculos
gigantes. A colheita mais importante foi de acelga suíço. Os miúdos cavaram
duas fileiras, cada uma com a profundidade de 1 metro e o comprimento de 30
metros, adicionaram o adubo e encheram o terreno de acelga. Tem crescido a
olhos vistos desde Janeiro, e agora apresenta folhas com mais de um metro de
extensão. Os miudos adoram-no pois é como se pertencesse a um livro de
ficção científica: é acelga «arco-íris», pois tem uma variedade de cores:
rosa, vermelho, laranja, amarelo. Igualmente inspirados pelo _Farmer in the
Sky_, os miudos não só trazem a família, como partilham a colheita com a
comunidade, que tem bastantes famílias pobres a necessitar de comida.

Quando lhes perguntam porque é que se meteram naquelas andanças, dizem às
pessoas que aprenderam com o livro a ética dos pioneiros, em que as pessoas
têm de partilhar e ajudar a comunidade de forma a serem todos mais fortes. E
os miudos encontram-se também a ensinar às outras famílias os métodos de
jardinagem que aprenderam.

Não há melhor publicidade do que esta para a ficção científica: os membros
da comunidade andam a dizer aos estudantes e aos professores que nunca
imaginaram que a ficção científica pudesse ensinar valores tão positivos
quanto estes.

A excitação é grande para as colheitas de verão. Estamos a aplicar conceitos
científicos para encorajar o interesse deles na FC: utilizamos colheitas
feitas a partir de cruzamentos científicos, como algodão natural de cor
verde e vermelha, e abóboras gigantes. Como projectos adicionais de escrita,
aprendem ainda como a jardinagem em recintos cobertos podia ser conduzida na
Lua e em Marte, e como a falta de gravidade afecta uma colheita. Por
exemplo, o milho cresceria ainda mais na Lua ou em Marte, ou iria tombar com
o peso?

Também estão a considerar os efeitos de uma plantação de abóboras em
gravidade zero: teriam formato redondo como bolhas de sabão ou a genética
continuaria a determinar a forma? Os miudos encontram-se a fazer projectos
artísticos sobre possíveis jardins lunares ou marcianos.

A ciência da jardinagem ligada à FC conduziu a que se abordasse um conjunto
de aspectos ligados à engenharia genética e os seus efeitos sobre as
colheitas, e respectivos resultados. Consideram as consequências positivas e
negativas, e encontram as suas próprias soluções para a engenharia genética
de plantações.

Devido ao sucesso desenvolvido como _Farmer in the Sky_, decidimos continuar
a utilizar a ficção científica nas escolas para demonstrar a utilidade dos
conceitos científicos, a ligação à ficção, e também os diferentes aspectos
éticos envolvidos.»

Alguns destes projectos são concebidos por consultores externos às escolas,
que colaboram com os professores a dinamizar os alunos e a ligar as diversas
disciplinas. Se algum dos leitores desta coluna for professor ou conhecer
alguém interessado, pode começar por aproveitar os conselhos de Marianne
Dyson, autora de _Space Station Science_, um livro científico que pode ser
utilizado como leitura de base para um workshop de ciência e ficção. O
endereço é o seguinte:

http://www.geocities.com/mariannedyson/sfspin.html

                         --oOo--

<> CIMEIRAS E O EMPREGO VIRTUAL

Há cerca de um mês, organizou-se em Lisboa uma cimeira europeia, em que se
debateu o papel da internet como sendo vital na luta contra o desemprego a
nível da UE, actualmente em cerca de 10 porcento, apesar do crescimento
económico evidente. O presidente da Comissão, Romano Prodi apresentou um
plano ambicioso para atingir a e-Europa, consistindo em dez pontos-chave, em
que se incluía o aumento de investimento para novos negócios e _startups_
tecnológicos, Maior empenho no ensino de tecnologia nas escolas e
universidades, e uma diminuição dos custos de comunicação para incentivar o
comércio electrónico.

Ao mesmo tempo, um relatório da Jupiter Communications, anunciava que se
previa um aumento dramático na Europa Ocidental dos negócios feitos na
internet: cerca de 415 porcento entre 1999 e 2001. No final deste período de
crescimento, prevê-se que o mercado europeu de comércio electrónico valha
cerca de 14 mil milhões de dólares.

A considerar pelo exemplo americano, tudo indica que os ventos estejam a
favor da Europa - os EUA estão a atravessar o período de crescimento
económico mais longo de sempre (já vai em 108 meses), e de acordo com Thomas
F. Siems, economista e conselheiro político do Banco da Reserva Federal de
Dallas, a internet é a grande responsável pelo fenómeno.

                         --oOo--

<> TECNO-SIMBIOSES NA TERCEIRA IDADE

Um dos problemas com que se defrontam actualmente as famílias urbanas, em
que ambos os membros do casal trabalham normalmente em profissões cansativas
que os ocupam grande parte do dia, é o de manter uma vigília constante, não
só sobre os filhos, mas também sobre pais e avôs que já não tenham
capacidade para tomarem conta de si mesmos. Este problema apresenta graves
questões éticas e morais, e nunca é de fácil resolução. No Japão, contudo,
terra famosa pelas suas tradições milenares, uma empresa apresentou um
dispositivo que permite resolver parte do problema: saber onde se encontra o
idoso em questão através do rastreio por satélite.

Trata-se de um dispositivo que se afixa à roupa ou ao corpo da pessoa em
questão, e que emite as coordenadas em sistema GPS para um centro local da
rede de telemóveis, permitindo aos familiares preocupados saberem
instantâneamente, por intermédio de mapas electrónicos, onde se encontram os
elementos desaparecidos. Actualmente, o Japão já utiliza sistemas para
encontrar pessoas desaparecidas, mas que têm por base os telemóveis - o que
é falível, pois basta a pessoa entrar num combóio ou fugir para as montanhas
para saír do alcance do rastreio.

Aparentemente, este novo sistema terá um grande mercado no Japão, onde se
estima existir cerca de 1,88 milhões de idosos vítimas de diferentes graus
de senilidade. (Fonte: Reuters)

                         --oOo--

<> A EMERGÊNCIA DOS SISTEMAS CONCENTRADOS

Onze das Maiores retalhistas a nível mundial planeiam juntar esforços para
desenvolver uma rede global que permita a ligação online dos seus 100000
fornecedores internacionais. Entre os diversos parceiros, encontram-se os
retalhistas americanos Albertson's, CVS, K-Mart, Target, e Safeway Inc.; os
franceses Auchan e Casino; e os ingleses Kingfisher, Marks & Spencer, e
Tesco. O grupo, combinado, fornece produtos a mais de 30 mil lojas a nível
mundial, e apresentaram um volume de vendas superior a 300 mil milhões de
dólares. Têm um mercado comum relacionado com a indústria da alimentação, da
drogaria e do vestuário.

De acordo com o _press release_, outras empresas, ao saberem da iniciativa,
decidiram-se-lhes juntar, nomeadamente Cora, um retalhista franco-belga. O
sistema _business-to-business_ de retalho online - o Maior do mundo - irá
envolver um investimento previsto de 100 milhões de dólares, e deverá ter
início em meados deste ano. O objectivo, de acordo com um porta-voz, é de
fazer diminuir os custos operacionais destes retalhistas, permitindo que
estejam ligados em tempo-real com os milhares de fornecedores com que se
relacionam.

Não se encontra ainda nomeada a empresa que irá desenvolver a tecnologia,
embora os possíveis candidatos já se encontrem em fase de prospecção. O
sistema final irá tomar o lugar do conjunto de sistema idênticos que cada
uma das empresas teria de desenvolver se quisessem atingir os mesmos
objectivos individualmente.

Segundo as palavras de uma porta-voz, «é óbvio que teremos um sistema muito
mais poderoso se o construírmos de uma só vez em conjunto. É que desenvolver
sistemas é incrivelmente dispendioso.» (Fonte: Newsbytes)

                         --oOo--

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|                Site Recomendado da Semana                    |
|                    SODA CONSTRUCTOR                          |
|        http://sodaplay.com/constructor/index.htm             |
| (animação de modelos virtuais em duas dimensões feitos de    |
|  cordas e massas - mais um passo dado para a construção do   |
|  mundo virtual eminente)                                     |
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A ARQUITECTURA DO POSSÍVEL
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<> ÓSCARES PARA INVESTIDORES E SEUS NEGÓCIOS

Decorreu em 12 de Abril a entrega dos prémios MIT (Massachusetts Institute
of Technology) para distinção em e-Business, cujo propósito é apreciar e
honorar um conjunto de empresas e iniciativas na área dos negócios
electrónicos, segundo um conjunto de seis categorias. Foram apreciadas
algumas centenas de participações, tendo sido distinguidas as empresas que a
seguir se anunciam.

+ Prémio Clicks & Mortar - United Parcel Services 
  >Reconhece a empresa que apresentou o Maior avanço na integração das
vertentes físicas e virtuais do seu negócio. Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/clicks%20and%20mortar.html

+ Prémio Alcance Global - eBay 
  >Reconhece a empresa cujo modelo tecnológico ou de negócio melhor
aproveitou a internet como canal para o contacto planetário. Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/global%20reach.html

+ Prémio Transformação de Indústria - Healtheon WebMD

  >Reconhece a empresa cujo modelo tecnológico ou de negócio transforma uma
indústria, criando novas áreas de oportunidade e novos benefícios para os
consumidores. Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/industry%20transformation.html

+ Prémio Responsabilidade na Rede - TRUSTe 
  >Reconhece a empresa que demonstra o seu empenho para uma navegação segura
através de produtos, serviços, tecnologias ou práticas de negócio seguras.
Mais detalhes: http://www.mitawards.org/winners/web%20responsibility.html

+ Prémio Alcance Internacional - NTTDoCoMo  
  >Reconhece a empresa que implementou com sucesso um modelo de negócio
electrónico inovador de forma a expandir o próprio mercado interno, e
utilizar em seguida o domínio para proteger ou expandir-se além fronteiras.
Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/international%20power%20player.html

+ Prémio Emancipação Tecnológica - Palm Inc. 
  >Reconhece os modelos de inovação tecnológica ou de negócio que apresentem
o Maior potencial para revolucionar o comércio electrónico. Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/disruptive%20technology.html

+ Prémio Caloiro do Ano - Handspring 
  >Reconhece as _startups_ de 1998 ou 1999 cujo modelo tecnológico ou de
negócios tenha sido desenvolvido para a penetração no mercado através da
internet. Mais detalhes:
http://www.mitawards.org/winners/rookie%20of%20the%20year.html

Informação detalhada sobre o MIT, a organização e a cerimónia pode ser
encontrada em http://www.mitawards.org/

                         --oOo--

<> MP-VÍDEO

O underground informático encontra-se fascinado com uma nova tecnologia que
promete revolucionar o vídeo da mesma forma que o MP3 revolucionou a música
digital. De nome «DivX», a tecnologia utiliza formas de alta compressão de
imagens, mantendo no entanto a alta qualidade. Filmes de cinema podem ser
descarregados da net numa mera questão de horas (desde que se tenha uma
ligação de alta capacidade) e armazenados num CD simples. Da mesma forma,
filmes disponíveis em DVD encontram-se a ser copiados por _hackers_ e
distribuídos pela net, usando este novo formato, tendência que começa a
assustar a indústria de Hollywood, que até então confiara no peso dos
ficheiros vídeo e na lentidão das conexões para se proteger da pirataria.

                         --oOo--

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TURISTAS EVENTUAIS
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<> UMA QUESTÃO DE OPINIÕES

Duas abordagens de cronistas nossos sobre o ser e o devir da Ficção
Científica.


O fim da FC? - por Jorge Candeias


Em média umas duas vezes por mês ouço ou leio alguém falar de um tal de
"fim da FC". Quem se refere a tal fim costuma armar um ar apocalíptico (se
é fã da coisa) ou resignado (se nem por isso) e discorre longamente sobre
os leitores que não lêem, os editores que não editam, os escritores que não
escrevem, o mundo que é tão sofisticado que já ninguém se espanta com coisa
nenhuma e nenhum puto já olha maravilhado para nada que não tenha
incorporados efeitos especiais de megamilhões de dólares.

Geralmente a conversa acaba em acabrunhamento colectivo: Pois é, a FC não
tem safa, tá podre, acabou-se ou vai acabar não tarda. É isso, vamos todos
desistir, arranjar um emprego e largar os RPGs futuristas, os livros e as
bandas desenhadas, os filmes e as séries de TV. Assim como assim ninguém
nos liga, e quando passamos na rua todos nos olham de lado como que a dizer
"olha o maluquinho que ainda acredita em histórias de fadas". Mesmo que as
fadas agora sejam nanotecnológicas, ou biotecnológicas, ou
cibertecnológicas e surfem na net com a varinha de condão a fazer de
prancha.

É que, de facto, a FC tem os dias contados, dizem, se ainda não acabou, vai
acabar não tarda, dizem, e ficaremos órfãos dela para toda a eternidade,
dizem.

E explicam tudo isso com o mundo em que vivemos. Mas que tem o mundo em que
vivemos a ver com a existência, persistência ou desistência da FC? Explicam
que a FC estava calmamente sentada no seu cantinho da sala, metida com os
seus assuntos, quando foi atropelada pela multidão ululante do mundo real
em que vivemos, com a sua internet, a sua realidade virtual, a sua
engenharia genética e os seus clones. Daí, depois de muito pisoteio, só
conseguiu sair assim uma coisa franzina, cheia de nódoas negras, e de ar
esfarrapado. Assim como que um parente nosso mais pobre ainda do que já era
antes. Uma espécie de cadáver adiado e ambulante.

E acabrunham-se mais um pouco, os que até são fãs da coisa. Os outros, os
que nem por isso, armam um ar blasé, auto-intitulam-se de pós-modernos e
explicam com abundância de argumentos que a FC não existe porque nunca
existiu, que o que existe é a literatura (ou o cinema, ou o que seja) e que
a divisão em géneros é artificial, arbitrária e perniciosa para o bom
entendimento da coisa cultural. Destes, raros são os que alguma vez pegaram
num livro de FC e os que o fizeram escolheram, propositadamente ou não, um
dos piores. Talvez uma tradução do Eduardo Saló de um livreco de 7ª
categoria, publicado nos States há 50 e tal anos e apresentado como
novidade pela Europa-América ou pela Argonauta. Ou coisa assim.

OK, meus senhores, tudo bem. Vocês são todos muito sabedores da coisa
literária em geral e da coisa FC em particular. Portanto, deverão ter toda
a razão. Decididamente a FC ou já morreu ou está quase ou nunca chegou a
existir. Perfeitamente.

Eu só pergunto a mim mesmo é que foi aquela gente toda fazer ao cinema?
Foram enganados? Ou foram à procura de alguma coisa? É que os dois filmes
mais vistos, mais falados, mais esperados do ano de 1999 foram filmes de
FC. Milhões de pessoas foram divertir-se com a space-opera assumidíssima da
Guerra das Estrelas e com a desconstrução da realidade da Matrix. Mais:
estes dois filmes, embora ambos FC da mais inconfundível, são tão
diferentes um do outro como o dia da noite. E não se fizeram só esses dois
filmes, muitos outros houve.

Sejamos claros: a única forma de deixar alguma coisa morrer na sociedade
humana é quando essa coisa deixa de merecer ou despertar interesse, quer
por ser ultrapassada por algo melhor, quer por simplesmente passar de moda.
Exemplos abundam, das cantigas de amigo aos corpetes, dos biplanos ao ZX
Spectrum. Por isso, se a FC está morta ou em vias de tornar-se cadáver, que
foi toda aquela gente fazer ao cinema?!

Eu cá sou biólogo de formação. E uma das coisas que nos ensinam nos cursos
de biologia é que se as populações são numerosas e diversificadas, então é
porque estão de boa saúde. Para ser totalmente claro, são tudo quanto há de
mais distante do cadáver.

Transpondo o bio-raciocínio (coisa que é discutível mas que a mim me parece
que só se lucraria se se fizesse mais vezes), temos uma população invejável
de pessoas que procuram um determinado tipo de estímulo e o encontram na
FC. Ou pelo menos num determinado tipo de FC. Essa população é, também,
altamente diversificada. Não fiz nenhum estudo sociológico, mas fui ao
cinema duas vezes ver o Matrix e uma ver a Ameaça Fantasma e vi de tudo na
plateia: desde o puto palerma que o que quer é ver explosões até gente de
ar intelectual que protestava à saída contra a falta de argumento do último
Star Wars. Desde gente que nunca sequer terá pensado em ler um livro (com a
notória excepção dos Tio Patinhas, X-Man e Homem Aranha) até viciados em
papel de olhos gastos de tanto ler.

Ou seja, transpondo o bio-raciocínio, a população dos que gostam de FC está
viva e recomenda-se.

E se a população dos que gostam de FC está em bom estado, que dizer da
própria FC? Morta já vimos que não está. Para que uma coisa esteja morta é
preciso que já não respire. E a FC respira. E, enquanto se forem fazendo
filmes como o Matrix, respira fundo. Poderá estar moribunda?

Há, entre os que fazem ou intelectualizam a FC, a ideia de são eles os
"donos" dela. Isto é, de que ela só existe na medida em que eles próprios
existem. A mim, isto parece um erro crasso. Penso que, pelo contrário, os
que fazem a FC só existem na medida em que a própria FC existe. Porque se a
não fizessem estes que a fazem no nosso Universo, outros seriam os autores,
actores, pensadores e realizadores de FC. E quem é então o dono da FC? O
público, claro! Os que procuram nela qualquer coisa que só nela encontram.
Os que gostam de FC

Já vimos que a população dos que gostam de FC está em bom estado. Já vimos
que são estes os verdadeiros donos da FC. Qual é a conclusão lógica?
Elementar! Enquanto existir gente em bom número a gostar de FC, a própria
FC sobreviverá. Enquanto essa gente for em grande número e bem diversa, a
própria FC estará longe de ser um cadáver adiado.

Outra questão é que tipo de FC é mais procurado e porquê esse tipo e não
tanto os restantes. Mas isso é coisa para outro artigo. Se
Deus-Nosso-Senhor e o Luís Filipe Silva quiserem, bem entendido...

                         --oOo--

«Is it you, is it me? Did I watch too much tv?» - por Daniel Dias Tavares

Mas porque é que tão sempre a dizer que a malta não lê? A malta lê que se
farta! Só numa hora e meia de filme há mais de cinquenta minutos de
legendas! Pois é, dizem que os movies são só explosões e porrada, mas o que
é certo é que para se ver seja o que for de cenas boas (ou marmelada à
maneira), temos de gramar aquelas falas todas, e toda aquela legendagem!

Desenvolvimento da história? Mas que história, ó meu? O que é que isso
interessa? Achas mesmo que a gente não sabe como é que é a história? A gente
gosta é de ver as coisas a acontecer, os fulanos dum lado para o outro, as
gajas na praia. E falam vocês de poesia...

Livros? Bah! É só secas. Pá, já não pego num livro há bueda tempo, mas
quando pegava, pá, eram só palavras! Palavras e palavras e palavras, e às
vezes sem pontuação, como é que a malta pode ler aquilo? Aquilo sufoca um
gajo! E o que falam, meu, tem algum interesse? Dizem alguma coisa nova? Meu,
não sou inculto. Pensas que sou mas não sou. O meu pai lia-me histórias para
adormecer. Eu também lia ao meu mano. A nossa família lia muito. Mas isso,
meu, era dantes. Quando os livros eram à maneira.

Vens-me tu com essas coisas! Claro que já não há bons livros!

Pronto, pronto, não te irrites, eu explico. Para ti, os livros são bons,
porque já tens trinta anos, meu, ou mais. Já és «adulto». Já não desbundas,
já não curtes. A vida para ti é pesada e sufoca, todos os teus minutos têm
de ser medidos, meu, tens de pensar se não devias estar a aproveitar o
momento, carpe diem, a fazer outra coisa, mais útil, mais proveitosa, mais,
como diria o meu pai, mais «lucrativa». Pois é, caramelo, as palavras são
todos aqueles momentos valiosos do tempo, em que pensas que vale a pena
estar a ler aquilo pesado e sufocante pois é como te sentes, e como te
sentes assim aquele é um livro para ti. E assim pensas que é um livro bom. E
bom até para mim.

Mas para mim não é! Pá, até parece que nunca tiveste a minha idade! Diz-me
lá se tem alguma graça ver o Super-Homem com problemas de consciência? Sim,
a sério! Não tens visto a banda desenhada cá da malta? Pá, e o Batman fraco
e velho. E o Peter Parker sem poderes. Meu, aquilo parece telenovela! Só
falta aparecer o Tarcísio Meira vestido de Joker. Ou pior ainda, o Luís
Cintra...

E olha prá FC. Olha bem prá FC. Não achas que está mesmo decadente?
Triologias e quadrilogias e séries infinitas? E teorias cosmológicas, e
sociedades patriarcas? Tão a gozar comigo? O Star Wars é que tá a dar, meu!
Aquilo é que é FC. FC cá da malta. Porrada e explosões e muito movimento.
Achas que eu quero tar a ler sobre problemas emocionais e as «considerações
da comunicação entre espécies» e todas aquelas tretas? Pá, era isso que tu
lias quando eras pequeno? Era Tolstoy e Balzac e Aquilino? Ná, não me venhas
com tretas: o que tu gostavas era do Doc Smith, era do Heinlein, era do
Asimov - era daquelas explosões e saltos no tempo e malta a bater nos maus e
a ficar com a miúda. Até os pobrezinhos dos robôs positrónicos lá tinham o
seu encanto...

Lembra-te, meu: alguma vez no teu tempo o Super-Homem tinha problemas
existenciais? Lá podia fraquezar de quando em vez, mas a culpa era da
kriptonita...

Alguma vez as space-operas tinham três mil páginas e uma história que nunca
mais acaba?

Meu, isto para ti agora é bom pois cresceste, mas eu sou apenas mais um da
malta. Sou como aquela cantora toda loiraça: preciso de heróis. Preciso
muito de heróis. Preciso de os ver lá, e que a vida seja simples. Meu, e a
vida é tão complicada para a malta, com os profes a darem-nos cabo do miolo
e os pais a separarem-se!

Portanto, sê mais compreensivo com o nosso ponto de vista: para nós, a vossa
FC é uma seca. A vossa FC só fala dos vossos tempos, e é muito complicada.
Talvez venha a gostar dela quando for velho como vocês, mas por agora, ó
meu, quero é Star Wars e Treks e Bd da curtida e jogos de computador. Essa é
que é a minha FC! Pois é lá que estão os meus heróis. É lá que eu me sinto
vivo!

                         --oOo--

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O QUE SABEMOS HOJE E NÃO SABÍAMOS ONTEM
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<> A MECÂNICA DO RISO

Por vezes, a literatura é demasiado soturna. Grandes questões colocadas
pelos especialistas das letras são quase sempre abordadas com cara sombria e
fraseologia pesada, mecânica, arcaica - como se as grandes questões não
pudessem ser abordadas através do humor, ou da sua forma mais conceituada, o
sarcasmo. Na verdade, o sarcasmo acaba por ser o humor do intelectual:
pertence à elite, estabelece uma certa cumplicidade entre autor e ouvinte,
tem normalmente uma agenda social ou política, e não serve para mero
entretenimento. A culpa do entretenimento afasta os romances e os filmes
considerados «de mero humor» dos escaparates dos grandes prémios académicos,
embora sejam os grandes preferidos do público. Kundera já falava disto
quando se referia ao peso e à leveza da alma, outros dizem simplemente que
se trata de inveja.

Mas o que é o humor? Na senda da resposta, EVENTOS encontrou um artigo
bastante interessante no site «How Stuff Works», já anteriormente
recomendado, que apresenta um conjunto de argumentos e considerações a nível
científico, e que resume de forma expedita aquilo que a ciência estudou e
entende como o riso e as reacções que lhe associamos.

Segue-se um extracto desse artigo:

«O que é o riso? Acima de tudo, o riso não é o mesmo que humor. O riso é a
resposta fisiológica ao humor. Consiste em dois elementos - um conjunto de
gestos e a produção de som. Quando rimos, o cérebro condiciona-nos à
simultâneadade destas duas reacções. Quando rimos «a bandeiras despregadas»,
acontecem mudanças em muitas partes do corpo, nos braços, pernas e músculos
do tronco.

Para ser mais específico: sob certas condições, os nossos corpos executam
aquilo a que a Enciclopédia Britânica se refere como sendo 'acções rítmicas,
vocalizadas, expiratórias e involuntárias' - mais conhecidas como riso.
Quinze musculos do rosto  contraem-se e acontece o estímulo do principal
músculo zigomático (o mecanismo encarregue de erguer o lábio superior).
Entretanto, o sistema respiratório fica perturbado pelo pseudo-obstáculo da
epiglote sobre a laringe, de forma que a inspiração do ar passa a ocorrer
como irregularidades, o que provoca os espasmos. Em circunstâncias extremas,
os canais lacrimais são também activados, pelo que, com o abrir e fechar da
boca e a continuação tentativa de inspirar oxigénio, o rosto fica húmido e
por vezes vermelho. O barulho que acompanha este comportamento bizarro varia
de risinhos calmos para gargalhadas sonoras.

Neurobiólogo do comportamento e pesquisador pioneiro do factor riso, Robert
Provine brinca com a situação, afirmando que encontrou um grande problema no
estudo do riso. O problema é que o riso desaperece precisamente quando se
prepara para o observar - em particular no laboratório. Um dos estudos
incidia sobre a estrutura sonora do riso. Descobriu quem em todo o riso
humano existem variações de uma forma básica que consiste em notas com o som
de vogais, curtas, repetidas a cada 210 milissegundos. O riso vai do tipo
'ha-ha-ha' para 'ho-ho-ho', mas nunca é uma mistura de ambos, afirma.
Provine sugere também que os seres humanos têm um 'detector' que responde ao
riso por despoletar outros circuitos neuronais no cérebro, o que, por sua
vez, provoca ainda mais riso. Isto explica a razão pela qual o riso é
contagiante.

O analista do humor, Peter Derks, descreve a resposta do riso como sendo 'um
comportamento rápido e automático'. 'De facto, a rapidez com que o cérebro
reconhece a inconguência básica do humor e lhe confere um significado
abstracto determina a nossa capacidade de rir', explica.

Uma nota interessante: uma das capacidades naturais do riso é a sua
utilidade na linguagem, afirmam os linguístas. O riso ocorre quase sempre
durante pausas ou no fim das frases. Os especialistas sugerem que um
processo ordeiro (tendo uma possível base neurológica) governa a colocação
do riso na fala e atribui à fala acesso prioritário ao nosso único canal de
vocalização. Este relacionamento forte do riso com a fala é como a pontuação
na comunicação escrita - é por isso que lhe chamam um efeito de pontuação.»

Mas a informnação não acaba aqui. Urge-se a leitura do artigo completo, em
, e depois, porque o conhecimento
não fica completo sem a experimentação, uma visita rápida a estes dois
endereços. Para que não se diga que a TecnoFantasia não sabe rir de si
mesma!

Timmy Bighands - http://www.timmybighands.com/default.asp?PID=1
Joe Cartoon (não aconselhado para fracos de estômago!) -
http://www.joecartoon.com

                         --oOo--

<> ALGUMAS DAS MAIS RECENTES DESCOBERTAS CIENTÍFICAS

Ciências do Comportamento: http://www.scicentral.com/B-behavs.html#articles
>Forças Sociais e Psicológicas Conduzem à Depressão Maníaca
>Selecção e Idade do Parceiro: o que as Fêmeas Realmente Pretendem
>O «Efeito do Sovaco» permite distinguir os elementos do clã dos
desconhecidos

Biotecnologia: http://www.scicentral.com/B-biotec.html#articles
>Bioengenheiros Desenvolvem Sistema Circulatório sobre Silício
>Investigadores Desenvolvem Nova Técnica para Identificar Genes Humanos
Desconhecidos
>É Preciso ser Veloz

Evolução e Paleontologia: http://www.scicentral.com/B-evolut.html#articles
>Sinais Antigos de Palitos Dentais Apontam para Evidência dos Primórdios da
Ingestão de Carne
>Dinossauros e Perús: Parentes Próximos?
>Será que um Naturalista Esquecido Descobriu a Selecção Natural antes de
Darwin?

Imunologia: http://www.scicentral.com/B-immuno.html#articles
>Medicamento de Tratamento da Esclerose Múltipla Pode Igualmente Suprimir
algumas Doenças do Foro Imunológico

Microbiologia: http://www.scicentral.com/B-microb.html#articles
>Descodificado Código Genético de Insectos Mortíferos

Ciências Neurais: http://www.scicentral.com/B-neuros.html#articles
>Proteína dos Nervos Essencial para distinguir Sensação de Dor
>Genes Ajudam os Ratos a Recordar

Genética: http://www.scicentral.com/B-molbio.html#articles
>Defeitos Genéticos Ligados à Incapacidade das Células de Reparar os Danos
no ADN
>Compreender os Vários Agentes de Sinalização Química nas Células Permite
Controlar Bioquímica Celular

Astronomia: http://www.scicentral.com/S-astron.html#articles
>24 Abril marca década triunfante do telescópio espacial Hubble
>Galáxias desérticas
>Mistério nos Pólos Marcianos
>Eros Visto de Perto
>SETI: Ainda Activo Após 40 anos

Engenharia Médica: http://www.scicentral.com/E-bioeng.html#articles
>Novo Plástico Ajuda a Curar Nervos Danificados

Engenharia Aeroespacial: http://www.scicentral.com/E-aerosp.html#articles
>Japão Desenvolve Motores para Aeronave Capaz de Voar de Tóquio para Nova
Iorque em 3 horas
>O programa de Transporte avançado no Espaço Procura Formas de tornar Ficção
Científica em Realidade
>Balões em Marte

Astrofísica e Relatividade: http://www.scicentral.com/P-astrel.html#articles
>Energia negra e a radiação de fundo
>Nova descoberta: ligação importante para compreender os últimos estádios
evolutivos das estrelas de pouca-massa
>Viages Espaciais

Ciência para os Jovens:
>Animais: A página dos pássaros: http://www.scicentral.com/K-12/K-birds.html
>Dinossauros: Festa Dino: http://www.scicentral.com/K-12/K-dinosa.html
>Experiências: Mini-Ciência: http://www.scicentral.com/K-12/K-experi.html
>Minerais: A desilusão do diamante:
http://www.scicentral.com/K-12/K-gems.html

Seleccionado:
>Guia para os conceitos e tecnologias que envolvem o mundo das comunicações
actualmente: http://library.thinkquest.org/27887/
>União Internacional da Telecomunicação (ITU): http://www.itu.int/
>iTnews (cobertura australiana de informação sobre tecnologia):
http://www.itnews.com.au/
>Rede Newsbytes: http://newsbytes.com/

FONTE: Portal de Ciência ( http://www.scicentral.com/ )

                         --oOo--

<> AGENDA CIENTÍFICA

+ Imagens de diferentes telescópios foram combinadas para criar uma
perspectiva multifacetada dos restos de uma supernova, situada na Pequena
Nuvem de Magalhães (Fonte: CNN). Endereço:
http://CNN.com/2000/TECH/space/04/13/chandra.supernova/

+ Novas Imagens do Mars Global Surveyor mostram camadas de gelo perto do
Pólo Sul que poderão ajudar os cientistas a explicar os segredos da história
climática do planeta vermelho (Fonte: CNN). Endereço:
http://CNN.com/2000/TECH/space/04/11/mars.ice.ap/

+ Existe um rosto em Marte? A zona de Cidónia, embora se tenha descoberto
ser apenas um truque da iluminação, continua a fascinar com o seu mistério
antropomórfico. A exploração pode ser feita no site interactivo
http://CNN.com/2000/TECH/space/04/12/cydonia.teaser/

+ Nuvem de Meteoros (Líridas) atingirá o cume no dia 22 de Abril.

+ Site Astronómico da Semana:
http://www.skypub.com/sights/skyevents/0004skyevents.html
  >Contém diagramas e recursos para uma boa apreciação dos eventos
estelares.

                         --oOo--

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EVENTOS & E-VENTOS
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<> ESTREIAS DA SEMANA

Estreou-se esta semana o filme «Dogma», uma aventura religiosa sobre a
procura do significado da fé e da nova ordem espiritual num mundo que a
parece ter perdido. O fabuloso desta encenação é que é extremamente
divertida, sem ter uma natureza de imposição ou de andar a pregar a
não-convertidos. Fez correr muita tinta sobre as implicações de blasfémia,
mas se se vir com atenção percebe-se a quantidade de respeito e de crença
que existe por detrás do argumento.

Na internet, existe em < http://www.dogma-movie.com/index.html > e pode
também ser encomendada em VHS ou DVD em  <
http://www.bigstar.com/dogma/index.cfm?banid=3589 >

                         --oOo--

(esta edição continua no próximo e-mail)

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(c) 2000 Luis Filipe Silva ( http://www.LuisFilipeSilva.com )
    Email: [email protected]
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Se desejar deixar de ser assinante, devera enviar uma mensagem indicando no
subject/assunto «cancelar assinatura» para
                [email protected]
                

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   |_____________________________________________________|

                        E V E N T O S

                  Revista de TecnoFantasia

< http://www.geocities.com/simetriaEVENTOS >
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Nº 2.08    publicação semanal e gratuita       16 Abr. 2000
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Coordenação: Luís Filipe Silva
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   (Mensagem 2 de 2)

FICÇÕES E CONFISSÕES

CONTEÚDO


CONCURSO: Regulamento do Prémio de Ficção Primavera 2000
UMA TURISTA DE OUTRO MUNDO, por Luís Miguel Sequeira (Parte 4 de 8)


---------------------------------------------------------------
Concurso de Ficção EVENTOS

1. EVENTOS vem por este meio dar a conhecer que se encontra aberto o
Primeiro Concurso de Ficção Primavera 2000.

2. Poderão concorrer todos os autores de qualquer nacionalidade com qualquer
número de obras, desde que respeitem as normas de conteúdo e submissão de
textos explicadas noutros números do regulamento. Encontram-se excluídos
elementos da equipa de EVENTOS.

3. Apenas serão aceites obras de ficção com tamanho entre 2000 (duas mil) e
8000 (oito mil) palavras, estarem escritas em português, e respeitarem o
espírito da TecnoFantasia ou qualquer das suas outras manifestações: Ficção
Científica, Fantasia, Fantástico, Terror, Horror, Realismo Mágico,
Surrealismo, História Alternativa, Ciberpunk.

4. As obras deverão ser enviadas obrigatoriamente com a identificação
completa do(s) autor(es): nome completo, nome literário, morada, número de
bilhete de identidade (ou equivalente no país de origem), telefone de
contacto, e-mail(s).

5. Cada obra deverá ser enviada como mensagem de e-mail («plain text»), sem
formatações, directamente no conteúdo do texto, com identificação correcta
do título e do autor no início do texto, e indicando no «Subject/Assunto» o
título da obra. Não serão aceites ficheiros em attach.

6. Se o comprimento da obra e as limitações do sistema o obrigarem, a obra
pode ser dividida em várias mensagens de e-mail sucessivas, desde que
perfeitamente identificadas no «Subject/Assunto» com a indicação do número
de ordem da mensagem, e do número total final (ex: «Msg 2 de 5»)

7. Num mesmo e-mail não deverão constar mais do que um, ou parte de, um
único conto. Se o(s) autor(es) pretender concorrer com mais do que uma obra,
deverá individualizar cada um dos seus contos com um e-mail ou grupo de
e-mails distintos e perfeitamente identificados.

8. No caso de divisão da obra em várias mensagens, a identificação do(s)
autor(es) deve constar do e-mail inicial de cada conto.

9. As obras deverão ser enviadas para o email [email protected]
até às 24h de 30 de Abril de 2000, hora de Lisboa.

10. O júri é composto unica e exclusivamente por membros da equipa de
EVENTOS.

11. Do concurso será apurado um único vencedor e até um máximo de 3 menções
honrosas, sendo anunciado na EVENTOS até 31 de Maio de 2000.

12. O jurí poderá deliberar não entregar nenhum dos prémios caso não se
verifique haver um mínimo de qualidade aceitável.

13. O primeiro prémio receberá um vale de compras (gift certificate) na
Amazon.Com no valor de USD 25 (25 dólares), e será publicado na EVENTOS em
data a anunciar. As menções honrosas terão como prémio a publicação na
EVENTOS em data a anunciar. O júri reserva-se no direito de sugerir a
publicação de contos que assim o mereçam.
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UMA TURISTA DO OUTRO MUNDO

   Luís Miguel Sequeira

Parte 4 de 8


     * CAPÍTULO 4 *

Eugênio de Castro chamou Duarte Nunes pelo final da manhã. Torceu o nariz
quando a fumarada anunciou a presença do sociólogo uns instantes antes deste
entrar pela porta entreaberta. - Apague isso por um minuto, por favor. Já me
chega a poluição de Lisboa...

Duarte Nunes, um sorriso radiante nos lábios, obedeceu ao chefe. Sentou-se e
suspirou, antevendo a discussão. O chefe revia as páginas do relatório que
entregara há uma hora atrás. Retirou um carimbo poeirento de uma das gavetas
e aplicou estrondosamente as palavras «Muito Secreto» em tinta vermelha à
capa do processo. Depois reclinou a cadeira e disse:

- Isto é tudo incrível demais, - comentou, também com um suspiro. - Bem.
Vejo que não falou na conversa de Paulo com a tripulante da nave. Alguma
razão para isso?

Duarte Nunes encolheu os ombros.

- Segundo Paulo, Myra vai ser dissecada mais cedo ou mais tarde. Não vale a
pena colocar no relatório que os tripulantes sobreviveram. Ninguém precisa
realmente dessa informação. Do ponto de vista oficial, os tripulantes
morreram carbonizados na queda do aparelho. Eu só soube do contrário depois
de ter falado com o Paulo. Não se falou dos tripulantes durante a reunião do
Conselho, e foi isso que fomos lá fazer: ouvir as declarações do Conselho, e
não entrevistar jovens turistas extraterrestres.

- Prudência e sensatez, - disse o chefe da Brigada. Sem esconder um pequeno
sorriso. - Estás a ficar velho, Diogo. Nunca pensei vir a associar essas
palavras ao operacional mais irreverente da minha unidade.

Duarte Nunes riu-se e encolheu os ombros.

- Parece-me que desta vez não temos muito por onde escolher, pois não,
chefe?

- Pois não. - Eugênio de Castro pousou os óculos em cima do dossier e
esfregou os olhos. Sentia-se cansado, e a manhã mal tinha chegado ao fim. -
Bem. Pede à D. Isabel que faça a cópia do costume e que mande o original à
Divisão. Mas a cópia é para ser guardada no cofre-forte, não quero isso
espalhado pelos arquivos gerais. Ah, e diz para o Paulo vir ter ao meu
gabinete logo que chegue, - acrescentou, à laia de esquecimento.

- Logo que chegue...? Mas ele costuma vir sempre às nove, - fez notar Duarte
Nunes, surpreendido. - É o mais pontual da casa... à excepção do chefe e da
D. Isabel, quero dizer. - O próprio sociólogo era quase sempre o último a
chegar, e se não fosse a questão do relatório que tinha de ser entregue,
provavelmente só teria aparecido depois do almoço.

Eugênio de Castro abanou a cabeça.

- Não, hoje ainda não o vi por cá. A D. Isabel telefonou-lhe para casa, mas
foi atendida pelo gravador.

- Hum... gostava de saber o que é que ele foi fazer de tão urgente que não
deixasse recado a ninguém, - disse Duarte Nunes, desconfiado. Mas também
abanou a cabeça. Brincou com o cachimbo apagado no canto do lábio. Decerto
não haveria motivos para se preocupar. Se calhar aproveitara o feriado de
amanhã e ia fazer uma ponte... mas estranhou apenas que não avisasse com
antecedência, não era o seu estilo. Curioso...

Paulo Vasconcelos, nesse momento, estava a reservar um quarto numa pensão de
Beja. Depois mudou de roupa para um camuflado que adquirira nos tempos da
tropa. Via-se como uma espécie de comando em missão secreta. Não tinha um
plano pré-definido. Agia por impulso, mas convicto que estava a proceder
correctamente.

Já não tinha ideias ilusórias sobre a apresentação da verdade ao grande
público. Duarte Nunes convencera-o pelo menos disso: era estupidez divulgar
aquilo que não podia ser divulgado. Mas havia uma inocente em jogo. Myra não
tinha culpa de ter sido apanhada nas tramas da política e do secretismo
envolvido em torno da verdade. Todas as ilusões que Paulo tinha em relação à
boa fé dos governos da Terra tinham-se desvanecido em fumo.

A ideia de Paulo era muito simples. Myra não podia servir de pretexto para a
divulgação pública da verdade; mas pelo menos podia servir como uma fonte de
informações sobre a verdade. Podia interrogá-la longamente sobre toda esta
questão; e escrever um dossier que seria arquivado para as gerações
vindouras. Paulo tinha a certeza que seria necessário esperar décadas,
séculos até, para revelar essas informações. Mas sentir-se-ia com a
consciência tranquila se os historiadores do futuro tivessem acesso à
verdade toda. Pelo menos seriam mais benevolentes com os seus
contemporâneos; pelo menos teriam existido pessoas no seu século que se
tinham preocupado com o assunto.

O facto de Myra ser humana e não um homenzinho verde com antenas e
tentáculos era um factor extremamente positivo para o sucesso do seu plano.
Seria fácil fazê-la desaparecer de circulação; com tantos secretismos, os
militares não poderiam fazer uma caça ao homem muito eficaz, sem revelarem a
razão pelo que o estavam a fazer. Além disso, Paulo estava a contar que a
esmagadora Maioria das pessoas que trabalhavam na base ignoravam o que se
passava. Mesmo as que tinham conhecimento da nave provavelmente não sabiam
que existiam sobreviventes da queda. Prova disso era a posição do Conselho
Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários - apesar de terem
convidado uma série de entidades, forçando-as a jurar segredo, não tinham
revelado toda a verdade, apenas o que lhes era conveniente. O grupo de
pessoas que sabia da existência de Myra era muito reduzido.

O ideal, claro está, era jogar com isso, fazer Myra desaparecer mas dando a
ideia que tinha sido... dissecada. Fazer com que todas as pessoas que
conhecessem a verdade ficassem bem certas de que nenhum tripulante tinha
sobrevivido à queda - mesmo que a sua sobrevivência tecnicamente se tivesse
prolongado bem depois da captura da nave. Porque era certo que nenhum dos
três tripulantes iria ser mantido vivo por muito tempo - era demasiado
arriscado. Alguém podia desconfiar de três prisioneiros mantidos vivos por
um tempo indeterminado. Além disso, tinham decerto extorquido todas as
informações de que necessitavam - daí já terem dissecado dois dos
tripulantes, restando Myra.

Nessa noite, Paulo relembrou-se dos poucos treinos militares que tivera, e
aproximou-se da base o mais que pôde. Investigou em pormenor a ronda da
guarda. Claro, uma invasão nocturna estava longe de ser possível. Por mais
desleixados que fossem os tropas portugueses, tratava-se de uma base de alta
segurança, nas mãos da Brigada Aerotransportada, que era treinada por
oficiais da NATO. Qualquer tentativa de invasão da base era impossível de
ter sucesso. Paulo tinha de entrar pela porta da frente e saír pelo mesmo
caminho, e confiar na desorganização e na burocracia das instituições
portuguesas. O plano mais simples e mais ingênuo era o que teria mais
probabilidades de suceder. Mas não era má ideia ter um plano de fuga
alternativo, e Paulo já tinha uma ideia do que podia fazer em caso de
emergência: tomar a rota do lixo. Era recolhido pela Câmara Municipal de
Beja por volta das três da madrugada, e ninguém controlava o interior do
camião do lixo. O problema seria esconder-se até àquela hora, mas isso teria
de ser improvisado.

Regressou ao seu quarto em Beja. Tinha trazido um computador portátil e uma
impressora laser. As maravilhas da tecnologia facilitavam enormemente as
falsificações simples de que precisava. Em pouco tempo conseguira replicar a
placa de autorização que ostentara no dia anterior. Mas desta vez exibia o
nome Dr. Paulo Vasconcelos, médico forense da Polícia Judiciária. Os seus
conhecimentos de Medicina seriam mais do que suficientes para enganar
qualquer médico que estivesse na base; era pouco provável que alguém
resolvesse colocar à prova o que Paulo sabia de Medicina Forense. Mesmo um
médico verdadeiro não sabia de tudo. E se alguém quisesse confirmar o nome e
posto de Paulo junto da PJ, isso não seria muito grave.

Claro que podia ser apanhado em flagrante delito, e ficariam com o seu nome
e contacto na PJ, mas Paulo tinha a certeza de que, com toda a burocracia
inerente, seria extremamente complicado associá-lo directamente ao rapto da
extraterrestre. Estava bastante confiante na ineficiência dos organismos
portugueses. Afinal de contas, existiam milhares de pessoas bem mais
suspeitas do que ele. Para começar, Paulo Vasconcelos oficialmente não sabia
da existência dos tripulantes vivos. Existiam muitas pessoas que sabiam, e
essas seriam as principais suspeitas.

Por isso, foi num carro alugado que se apresentou junto da guarita da base.
Apresentou uma carta falsificada da PJ em como confirmavam a sua identidade,
assim como um fax alegadamente enviado da base a autorizar a sua entrada.
Evidentemente que o guarda desconfiou, pois não tinha nenhuma indicação no
sentido de deixar passar um agente da PJ. Precisava de confirmar. - Claro, -
disse Paulo, despreocupado. O guarda levou o fax, o cartão da PJ e a carta
falsificada. Voltou pouco depois com um tenente que lhe bateu a
continência. - Não temos nenhuma indicação de uma visita de um agente da PJ
hoje, - disse o tenente secamente.

- Pois não, - confirmou Paulo. - Venho da Brigada de Crimes Extraordinários,
que lhes enviou hoje à tarde este fax. Venho assistir a uma operação
médica, - disse ele.

- Qual operação médica?

Paulo encolheu os ombros.

- Essa informação é classificada, meu tenente. - Mas explicou com precisão
aonde se tinha de dirigir. - Disseram-me que me devia apresentar nesse local
às 10 da manhã.

O tenente franziu o sobrolho; provavelmente desconhecia o que se passava
nessa zona da unidade. Mas escoltou Paulo ao interior de um dos edifícios
mais próximos. Aí entregou Paulo a um capitão, que verificou as suas
credenciais, que não tinham nada de suspeito - afinal de contas, Paulo era
um agente da Brigada de Crimes Extraordinários.

- Não há nenhuma operação marcada para as dez horas de hoje, - disse o
capitão. - Não sei como lhe disseram uma coisa dessas.
Paulo encolheu os ombros. - Apenas cumpro ordens, meu capitão, tal como o
senhor. Não me surpreenderia que tivessem chegado mais pessoas para o mesmo
fim...

O capitão pigarreou.

- Nessa zona só está marcada uma operação para depois de amanhã, e não temos
autorização para deixar ninguém entrar antes disso. E o seu nome não consta
de lista nenhuma, excepto na dos visitantes de anteontem, claro.
Paulo jogou o seu primeiro trunfo. - Não, não, está-me a confundir com as
pessoas que vieram à reunião do Conselho Nacional para as Observações de
Fenómenos Extraplanetários. Mas como pode confirmar, eu não estive presente
nessa reunião, estive nos trabalhos preparatórios para esta operação médica
de depois de amanhã.

- Tenho de confirmar, - disse o capitão. - Martins, revista aqui o senhor
agente, e prepara a papelada, - acrescentou para um dos sargentos de dia.

As coisas estavam a correr bem. O sargento torceu o nariz para a máquina
fotográfica que Paulo trouxera. - Não são permitidas máquinas fotográficas
dentro da base, - disse, peremptoriamente.

Paulo encolheu os ombros. - Como quiser, mas no fax que trouxe vem referida
a lista de equipamento que fui autorizado a trazer.

- Esta lista vem de Lisboa, bolas, - disse o sargento. - Não posso verificar
isto agora, hoje é feriado municipal em Lisboa.
Esse era o segundo trunfo de Paulo. - Pode sempre ligar ao oficial de dia da
unidade...

O sargento seguiu a sugestão. Entretanto, o capitão regressava com duas
folhas de papel.

- De facto, o seu nome não consta da lista de presentes da reunião, mas sim
dos que visitaram o Edifício J, - confirmou ele.

- Precisamente, meu capitão, - disse Paulo, com um sorriso. A confusão desse
dia jogava a seu favor.

- Onde foi o Martins?

- Confirmar qualquer coisa, - afirmou Paulo, inocentemente. Um minuto mais
tarde, regressou com cara de poucos amigos.

- Meu capitão, este senhor diz que precisa de levar a máquina fotográfica lá
para dentro, mas como sabe é proibido, - disse o sargento, ostentando o fax.

O capitão leu o fax na diagonal.

- Bem, aqui diz que pode... confirmou isto, Martins?

O sargento encolheu os ombros, aborrecido.

- É feriado em Lisboa... o oficial de dia não sabe de nada, e não conhece
nenhum «Tenente-Coronel Sousa» nessa unidade. Não se consegue contactar lá
mais ninguém...

Mas o capitão não levantou grandes ondas.

- Desde que não tire fotografias a torto e a direito... não vejo qual o mal
disto.

- Obrigado, meu capitão, - disse Paulo, apropriando-se da máquina antes que
o capitão mudasse de ideias.

- Bom, isto está uma enorme trapalhada, - disse o capitão, irritado, mas não
com Paulo, apenas com a burocracia. - Você devia ter vindo com o Modelo 3 e
não com esta papelada que não me serve de nada.

- Foram coisas à última da hora, - disse Paulo. - Como hoje era feriado, não
conseguiram enviar o Modelo 3 a tempo - Paulo ignorava completamente o que
isso era - mas por isso é que mandaram o fax do Estado-Maior a confirmar,
assim como esta carta da minha Brigada.

- Seja, - disse o capitão. - Pelo que percebi, só vai fazer trabalho
preparatório, não é verdade? A operação é só para depois de amanhã.

- Sim, vou ter de voltar com uma colega minha que já está cá, - disse Paulo,
cautelosamente. Agora é que as coisas se começavam a complicar...

O capitão releu a papelada.

- Diz aqui que vai acompanhar uma Drª Maria de Barros, - disse ele. - Mas
não temos aqui nenhuma Drª Maria de Barros. Nem interna, nem visitante, nem
nada.

Paulo encolheu os ombros.

- Não sei de nada, meu capitão. Talvez consiga encontrar a papelada relativa
à Drª Barros enquanto eu trato das coisas...?

O capitão suspirou profundamente. Mas continuava a não estar desconfiado;
apenas aborrecido por lhe ter calhado um problema burocrático complicado de
resolver. Paulo lembrava-se muito bem dos tempos passados na tropa: o que
qualquer militar detestava mais era ter de tomar decisões, pelas quais teria
de responder mais tarde. Por isso, o que faziam era aldrabar o máximo que
pudessem, deixando tudo mal feito, porque se alguma coisa corresse mal,
iriam defender-se com a trapalhada e a desorganização causada por outros. E
em Portugal era muito raro assistir a intervenções directas dos Tribunais
Militares; as altas patentes não gostavam de expôr a sua desorganização
acusando oficiais de negligência ou de mau trabalho. Nunca se sabia quando o
feitiço se voltava contra o feiticeiro, ou seja, um juíz militar nunca sabia
quando é que ele próprio seria julgado. Assim sendo, a tropa era geralmente
benevolente. Não lixes o teu próximo para que ele não te lixe a ti.

Logo, o capitão deu ordens ao sargento que arranjasse a documentação
necessária, que incluisse o nome de Paulo na lista dos visitantes
autorizados, e que o escoltasse até ao Edifício J. Tudo estava a correr como
esperava. Melhor ainda: todos os soldados nos vários postos de controlo eram
diferentes do dia em que ele estivera ali pela primeira vez, o que só
melhorava a sua situação; Paulo tinha passado por um psicólogo por erro, e
agora estava a passar por um médico legista. Teve a lata de perguntar onde
poderia mudar de roupa para umas batas médicas; após alguma confusão,
indicaram-lhe um vestuário onde se encontravam as batas. Felizmente o acesso
ao vestiário era comum aos dois sexos; isso ia facilitar a tarefa mais
tarde...
Paulo foi muito rápido a escolher não uma, mas duas batas, envergando uma
por cima da outra. Mesmo após ter sido revistado, ninguém reparou no
assunto; e como claramente não levava mais nada, excepto a máquina
fotográfica Polaroid, deixaram-no entrar na sala onde tinha visto Myra pela
primeira vez. Advertiu que tinha de ficar sozinho por um momento nessa sala,
depois teria de ir à sala de operações propriamente dita se fosse o caso.

Myra parecia estar a dormir quando ele entrou, mas levantou-se bruscamente.
Ia para dizer alguma coisa, e os seus olhos claros reconheceram-no quase de
imediato, mas Paulo levou o dedo aos lábios e ele disse, muito rapidamente:

- Não digas absolutamente nada; estou aqui para te levar para fora da base,
tens de confiar em mim completamente e fazeres exactamente o que digo sem
fazer perguntas. Não respondas a absolutamente nenhuma pergunta que te
fizerem sem meu consentimento. E agora temos de nos despachar, tens de mudar
de roupa o mais depressa possível.

Myra hesitou, mas algo no olhar de Paulo convenceu-a de que ele estava a
falar a verdade. O jovem detective tirou primeiro o seu par de batas, mas
depois também tirou o pullover que trazia; despiu as calças (para horror de
Myra) e livrou-se de uns calções curtos que tinha colocado por baixo das
mesmas. - Tira esse teu fato e veste isto, mas tens de te despachar: Não sei
se estamos a ser observados por uma câmara e pode ser numa questão de
minutos que alguém se lembre de olhar para os monitores. Descansa, eu fico
de costas.

Myra obedeceu sem uma palavra. Ficava com um aspecto ridículo, mas com a
bata por cima, não se notava grande diferença. Paulo prendeu-lhe os cabelos
num rabo de cavalo simples, colocou-lhe um par de óculos antigo, e tirou-lhe
uma fotografia com a Polaroid. Com precisão, utilizou um X-acto para cortar
da fotografia a parte relativa ao seu rosto, e aplicou-a noutro cartão
falsificado que ostentava o nome «Dra. Maria de Barros». A operação levou
talvez trinta segundos. Agora ia começar a parte verdadeiramente complicada.
Primeiro, tirou o rolo da Polaroid e inutilizou-o; substituiu por um rolo
novo que trouxera num bolso. Depois, amarrotou o fato de Myra e colocou-o na
sacola onde trouxera a máquina e que tinha sido devidamente revistada.

- Isso nunca vai funcionar, - comentou Myra em voz baixa, mas de facto
impressionada com as idéias de Paulo. Este apenas lhe dedicou um pequeno
sorriso. - Vamos à parte mais complicada; para todos os efeitos, és a Dra.
Maria de Barros, minha colega, e vamos dirigir-nos à sala de operações.
Felizmente que não está lá ninguém neste momento.

Myra suspirou.

- Levaram-nos dali ontem de manhã, - disse tristemente.

- Não me falhes agora, Myra. Eu estou a contar com a imbecilidade da tropa,
mas há gente cá dentro que não é parva. Além dos americanos, claro, que
andam por aí a torto e a direito. Daqui por algum tempo vão descobrir que
algo não está bem. Mas estou a contar que a segurança seja tanta que não
vamos encontrar ninguém que te conheça. Afinal de contas, oficialmente,
estás morta, o que é para nós uma enorme vantagem...

Saíram da sala, e obviamente que o soldado de serviço desconfiou por ver
mais uma pessoa a saír da sala, mas antes que protestasse, Paulo exibiu a
ordem forjada em que a Dra. Maria de Barros o iria acompanhar.

- Vamos precisar de entrar na sala de operações para uma vistoria técnica, e
depois agradecia que nos indicasse a saída, - pediu Paulo.

O soldado resmungou, mas obedeceu. Paulo ficou aliviado - receava que ele ou
ela fossem revistados uma vez mais. Mas a verdade é que eles só deviam ter
ordens para revistar as pessoas à entrada; mas provavelmente ainda seria
revistado quando fosse saír da base. Ainda havia muita coisa que poderia
correr mal.

Foram levados para a sala de operações, e Myra hesitou visivelmente. Paulo
agarrou-lhe firmemente no braço e apenas sussurou:

- É apenas um segundo; e eles já não estão lá. - Depois abriu a porta,
entrando na sala de operações. Usando um pequeno truque, dissimulando as
suas palavras, falando de forma a que apenas Myra o ouvisse, disse,
rapidamente: - Estamos aqui oficialmente a fazer uma vistoria técnica à sala
de operações. A operação vai ser depois de amanhã. - Myra gemeu, mas Paulo
apenas a segurou com mais força. - Não podemos fazer nada por eles, como
muito bem sabes. Finge que estás a observar tudo na sala, a disposição das
camas, o equipamento que por aqui estiver, de forma profissional. Nada de
hesitações. São apenas cinco minutos.

Myra pareceu ter sérias dificuldades em fazer algo de racional, e Paulo
quase que entrou em pânico por ela ter ficado perfeitamente estática, sem
saber o que fazer, enquanto que ele, por sua vez, começou a fazer uma
inspecção metódica ao equipamento. Tirou algumas fotografias com a Polaroid.
Ao fim de algum tempo, Myra pareceu entrar em actividade, e ligou e desligou
alguns instrumentos eléctricos, verificou a posição de outros, embora se
recusasse a aproximar das camas no centro. Paulo deu-se por satisfeito e fez
sinal a Myra para abandonar a sala. Antes de abrir a porta, murmurou, de
forma quase inintelegível:

- Vamos agora saír; tenho uns papéis que autorizam a tua saída na minha
presença. Não fales, não digas nada, deixa ser eu a falar. Ok? - Ela acenou
afirmativamente e saíram.

O soldado pôs-se em sentido.

- Terminámos o nosso trabalho, - afirmou Paulo com firmeza. - Por favor
escolte-nos para os vestiários.

O soldado, obediente, encaminhou-os pelos corredores até à porta comum dos
vestiários. Paulo fez uma curta verificação de que estavam ambos vazios.
Depois sussurrou:

- Espera um minuto por mim; trouxe-te alguma roupa, nada de especial, mas
vai ter de servir. - Estava tudo a correr tão bem que provavelmente não iria
ser necessário usar o plano B. - O tempo urge; não sei quando é que vão
descobrir que não estás na tua cela, como devias. - Mudou-se rapidamente e
passou a Myra a roupa que trazia por baixo: uns calções e uma T-shirt, a
única coisa que conseguia dissimular por baixo da sua camisa e jeans. Mas
teria de servir. Myra desapareceu no vestiário feminino e emergiu pouco
depois. - Os calções estão grandes demais, claro, mas pode ser que não notem
muito... enfim... não havia maneira de trazer outro tipo de roupa. Vamos
embora.

O soldado voltou a acompanhá-los sem um comentário. Myra ajustava
discretamente os calções de forma a não parecerem tão grandes; a T-shirt
revelava a plenitude dos seus seios, nús por baixo do tecido de algodão.
Bem, pode ser que os distraia, pensou Paulo, embora estivesse ciente de que
esta era agora a parte mais complicada...

Mas a sorte parecia estar sempre do seu lado. Chegou ao posto inicial de
controle; não estava o capitão, apenas o sargento. O capitão poderia
desconfiar de uma jovem atraente em T-shirt e calções; o sargento estava
mais interessado no generoso par de maminhas e nas elegantes pernas
bronzeadas da jovem. Fez um pequeno sorriso, muito discreto, coçou o lábio
superior e apenas comentou:

- Tão depressa?

- A nossa autorização não nos concedia mais tempo, - fez notar Paulo
Vasconcelos, num tom de voz que esperava ser suficientemente convincente na
sua tristeza. - É pena... mas está tudo em ordem, penso eu. Posso assinar a
folha de saída?
O sargento encolheu os ombros e passou-lhe o bloco-notas electrónico,
dizendo: - Sabe que ainda não descobrimos a documentação da sua colega...? O
meu capitão está neste momento ao telefone com Lisboa, parece que os
registos se perderam...

- Ah sim? - fez Paulo, fingindo surpresa. - Bem, a Dra. vai assinar aqui e
deixar-vos a placa de identificação, se quiserem... podem depois verificar
tudo com calma... até porque têm aqui o contacto dela, e o meu consta do
fax... - Mais um conjunto de tretas; a «Dra. Maria de Barros» constava como
assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa, e seria
uma questão de minutos verificar que não existia lá ninguém com esse nome.
Mas, tal como suspeitara, o sargento não ia verificar nada no momento.
Chamava-se a isso «engenharia social», a forma mais eficaz de penetrar
segredos de qualquer espécie: agindo e comportando-se como alguém que
estivesse dentro do meio, sem hesitações, era um milhão de vezes superior a
um conjunto de documentos correctamente forjados... meias mentiras ditas de
forma convincente eram por vezes mais aceitáveis do que a verdade, contada
de forma hesitante... Paulo aprendera isso nos treinos para detective. Nunca
pensara em usar esses conhecimentos. Aliás, agora que pensava no assunto,
estava a cometer crimes atrás de crimes.

«Mas a causa é justa», raciocinou. «Vão matar Myra; ou talvez prendê-la para
sempre, ou pior ainda. De qualquer das formas vão abafar tudo, e dizer que
ela morreu depois da queda. Subverter a verdade. Não estou a fazer pior do
que eles, antes bem pelo contrário....»

Paulo podia ser um jovem romântico, mas também concordava, em certa medida,
com Duarte Nunes. Estava posta de parte qualquer revelação oficial ou
oficiosa da existência de Myra. Contra isso não havia argumentos. Mas uma
coisa era esconder informação, a verdade - como doía a Paulo pensar sequer
nisso! - outra era matar uma inocente apenas por causa dessa informação. E
isso ia contra todo o seu ser. Não podia concordar com isso.

Assinou o documento, recordando-se no último momento de o datar à maneira
militar - o que só iria ajudar a tornar convincente a sua história - e
lançou um olhar significativo a Myra. A jovem compreendeu perfeitamente; e
apesar da mão lhe tremer ligeiramente, não o desiludiu.

- Preciso de preencher o relatório de visita, - acrescentou Paulo. Sabia
perfeitamente que não se podia «esquecer» disso, seria imediatamente
suspeito.

.

- Claro, sirva-se, - disse o sargento com um sorriso que era dirigido à
«Dra. Maria de Barros», e entregando-lhe novo bloco-notas electrónico.
Perdiam-se preciosos minutos... a qualquer momento...

Tocou o telefone na secretária do sargento. O coração de Paulo deu um pulo.
Garatujou de forma quase irreconhecível as seguintes palavras: «Dr. Paulo
Vasconcelos, visita de inspecção de rotina à sala de operações para o dia
15. Conferido todo o equipamento. Tudo em ordem» O sargento atendeu o
telefone.

- Não, o capitão não está aqui... urgente? Certo, vou já chamá-lo,
aguarde...

Fez sinal ao soldado.

- Traga cá o nosso capitão, um assunto de extrema urgência... tem o alferes
Bastos em linha. Eu fico aqui a tratar da papelada com estes senhores. - O
soldado fez continência, rodou sobre os calcanhares e desapareceu em passo
acelerado.
O pulso de Paulo tornou-se irregular; Myra olhou para ele com um olhar
amedontrado. Mas não havia nada a fazer. O sargento, nada incomodado com a
«urgência», escrevinhou uma série de coisas, depois recolheu os cartões
identificativos e passou-lhes novos, sem as fotografias, apenas com o nome,
que eram o salvo-conduto para a saída. Paulo começou a ficar em pânico; os
passos do capitão aproximavam-se. Este vinha sorridente, como se também não
estivesse minimamente preocupado com a «urgência». - Sargento, verificou a
máquina fotográfica? Depois mande-os embora.

O sargento resmungou qualquer coisa de inintelegível mas depois acrescentou.

- Não, meu capitão; desculpe lá o mau jeito, mas de facto esqueci-me. - O
seu ar enfadado recaíu sobre Paulo enquanto o capitão atendia o telefone. -
Rotina; os rolos das máquinas têm de ficar cá. Serão depois enviados, após
inspecção, para a sua morada.

Lá se iam partes das provas... mas pelo menos Paulo ficou satisfeito de ter
destruído o primeiro rolo, o que tinha a fotografia de Myra para o cartão de
identificação. Desajeitadamente abriu a máquina; o rolo caíu-lhe para o
chão. Debruçou-se e apanhou-o. O capitão exclamava:

- Desapareceu? Quem? Quando? Aonde? Porque é que só agora me informaram
disso?! - Desligou o telefone, aparentemente furioso. - Martins, há
problemas lá dentro; chama a PM, parece que fugiu uma prisioneira... deixa
estar que eu trato destes senhores. Desculpem a confusão, - disse num
sorriso sincero. - Problemas, só problemas... olhe, extraviou-se de facto a
documentação da Sra. Dra. , mas da secretaria da Universidade, que hoje
também está fechada, prometeram que nos mandavam uma cópia de tudo amanhã,
por fax ou pela Internet... - Encolheu os ombros. - Estas coisas à pressa
correm sempre mal, não é assim?

- E eu que venho de Lisboa e perdi o meu feriado, - disse Paulo, com um
sorriso. - Mas ordens são ordens, e a verificação tinha de ser feito hoje,
pois a Dra. Barros amanhã tem uma palestra...

- Claro, claro... mais uma vez, as nossas desculpas. O praça Andrade
acompanha-o à saída. Tenha um bom dia... e uma boa viagem, até Lisboa.

- Obrigado, - agradeceu Paulo, aliviado, e Myra sorriu. O soldado
escoltou-os, fechando a porta atrás deles, mesmo na altura em que o sargento
aparentemente vinha em passos largos pelo corredor... mas Paulo, Myra e a
sua escolta afastavam-se rapidamente, chegando ao local onde tinha deixado o
carro... o soldado fez-lhes continência e também lhes desejou os bons
dias... a porta do posto de controlo abriu-se de rompante e emergiram de lá
dois soldados armados, a correr... Paulo girou a chave na ignição, minutos,
tinha apenas minutos, felizmente o carro pegou à primeira, contrariando a
Lei de Murphy, e em segundos estava junto do portão, deixando os soldados
para trás. Pelo retrovisor reparou que davam meia volta; decerto para
informarem telefonicamente que estava no portão.

- Sabes pôr um cinto de segurança? Óptimo. Agarra-te bem, isto vai ser mesmo
por uma unha negra... - avisou Paulo. Conduziu o mais devagar que os seus
nervos lhe permitiam até ao portão; entregou os distintivos identificativos
da saída; o tenente de há pouco cumprimentou-os, verificou as credenciais,
sorriu, desejou os bons dias... o telefone já estava a tocar e um soldado
berrou:

- Meu tenente, meu tenente, uma chamada urgente do nosso capitão!

Mas Paulo já tinha saído do quartel. Ainda procurou andar o mais devagar
possível, como se nada se passasse, gotas frias de suor a escorrerem-lhe
pelo rosto... mas logo que chegou à primeira curva, acelerou ao máximo,
fazendo chiar os pneus. Tinha minutos de avanço! Minutos! O plano B teria
sido muito menos arriscado, mas agora era tarde demais para chorar... a
única hipótese que tinha agora era na velocidade. Myra fechou os olhos e
agarrou-se com força à porta. Paulo ainda gracejou: - O quê, fazes uma
viagem interestelar numa nave que foi abatida e tens medo de andar de carro?

- Piadinha, - disse ela, de dentes semi-cerrados, com o leve acento
estrangeiro que possuía. - Além do mais, era eu quem estava a pilotar na
altura.

Paulo descreveu curvas fora de mão, fazendo chiar os pneus, deslocando-se a
tanta velocidade que nem se sentiam os buracos da estrada.

- Vai dando umas olhadelas para trás, a ver se nos perseguem...

- Como é que se chamam aquelas coisas grandes, com um rotor de pás
barulhentas? - perguntou ela.

- Quê, helicópteros? - sugeriu Paulo.

- Vêm dois atrás de nós, - disse ela, olhando pelo retrovisor lateral.

- Merda! - exclamou Paulo. - Ok, agora agarra-te mesmo bem, - disse,
cerrando também os dentes, guinando para fora da estrada. Não podia fugir de
helicópteros. Felizmente, estava em pleno Alentejo, que é só planície, e um
carro quase que anda à mesma velocidade fora da estrada. Infelizmente,
claro, havia poucos sítios onde se esconder. Aos solavancos, o carro desceu,
em sentido a uma ribanceira, no fundo da qual estava um pequeno ribeiro,
agora quase seco devido à proximidade do Verão. - Quando eu parar, sais o
mais depressa possível, ouviste? E atira-te para junto do ribeiro, perto dos
arbustos...
O carro continuou o seu percurso descendente, agora batendo em tudo que eram
rochas. Paulo fazia um esforço sobrehumano para continuar no seu caminho.
Nisto começou a ouvir as pás dos helicópteros. Mas antes de entrar em
pânico, travou o carro, a poucos metros do ribeiro, abriu as portas e
berrou: - Agora! Pira-te! - e saltou, com o carro ainda em andamento.

Quase que nem teve tempo de verificar se Myra o seguira ou não. Tropeçou,
rebolou, deu cambalhotas na terra, que se transformou em lama; tinha
atingido o ribeiro. Com um estrondo, carro e condutor atingiram o ribeiro
praticamente ao mesmo tempo, embora não no mesmo sítio. Uma fracção de tempo
mais tarde, ouviu o zunir das pás dos helicópteros, e o rugir das
metralhadoras; algumas balas silvaram perto de si, umas atingiram o depósito
de combustível do automóvel, que explodiu numa chama laranja violenta; Paulo
mergulhou no ribeiro e rezou para que Myra tivesse feito o mesmo. Seguiu-se
novo estampido; depois os helicópteros, que sobrevoavam a zona. Mas não
aterraram; deram meia volta e, surpreendentemente, regressaram para onde
tinham vindo.

Paulo aproximou-se da margem. O carro continuava a arder, a lançar fumaça
negra para o ar. Onde estaria Myra? Chamou por ela, uma, duas vezes; depois
lá a viu, também dentro do rio, junto aos arbustos. Parecia estar bem,
embora coberta de fuligem. Riu-se da triste figura dela, mas Myra estava
muito séria.

- Isto deve ter sido o pior plano de fuga jamais imaginado deste lado da
Galáxia, - disse ela com um rosto sombriu. Depois riu-se também. - De
qualquer das formas, obrigada... entre morrer numa cama de operações estéril
ou num carro conduzido por um louco suicida, prefiro mil vezes a segunda
alternativa.

- Bem, ainda não estamos a salvo. Os helicópteros podem ter voltado para
trás, mas eles não vão desistir, vão mandar jipes atrás, para fazerem um
levantamento do terreno, - disse Paulo. Depois olhou para o horizonte. - Mas
podem levar ainda algum tempo... vamos ter de improvisar. Há ali uma quinta.
Vamos procurar ajuda...

A quinta não era bem uma quinta, era mais um monte alentejano, e para mais,
abandonado. A sorte começava a falhar-lhes. Myra resmungou:

- Normalmente as minhas férias não são assim tão agitadas... abatida por
militares, salva por um maluco, perseguida por helicópteros...

- Cortesia do Ministério do Turismo de Portugal... bolas, isto está tudo
deserto e abandonado! Não mora cá ninguém há séculos, - lamentou-se Paulo.

- Não exageres, há um tractor quase novo na garagem, - disse Myra
calmamente.

- Um quê?! - exclamou Paulo, surpreendido. Voltou-se na direcção da jovem.
Ela apontava para uma garagem, em muito mau estado, mas que de facto tinha
lá um tractor laranja, podre de velho. - Ah, isso nunca funcionará, está
avariado há milênios.

- Tens alguma alternativa? - perguntou Myra com um sorriso. Agarrou nalgumas
ferramentas e limpou-as a um pano sujo de óleo. Depois abriu a caixa do
motor do tractor e começou a mexer no interior.

- Não me vais dizer que sabes consertar tractores terrestres, - disse Paulo,
incrédulo.

- Pela Grande Galáxia! As vossas criancinhas não sabem consertar bicicletas?
Nós damos motores de combustão interna no liceu, - disse ela,
arrogantemente. Começou a mexer no interior do motor, tirou algumas peças,
depois ficou a olhar para elas, pegou nuns arames e começou a introduzir
tudo no interior. - Pronto. O motor não vai ficar aproveitável depois disto,
mas pelo menos deve dar para chegar à cidade mais próxima...

- Estás a brincar comigo, não estás? - disse Paulo. - Nem levaste cinco
minutos...

Mas nem terminou a frase; Myra fez girar a ignição, e com muito protesto, o
tractor arrancou à terceira tentativa. Limpou as mãos, sujas de óleo até aos
cotovelos. Depois deitou fora o trapo velho. --Vens ou vais ficar aí a
olhar?

- Todas as mulheres do teu planeta sabem consertar tractores velhos?! -
Paulo estava estupefacto.

- Em Andor, ninguém no seu perfeito juízo tocaria numa coisa barulhenta e
mal-cheirosa destas, - disse ela laconicamente. - Algumas minhas amigas
provavelmente deixariam de me falar só por ouvirem que eu tinha mexido
nisto. Por outro lado, não temos alternativa, pois não?

Paulo abanou a cabeça. Depois, resignado, sentou-se no tractor. Mas Myra
afastou-o.

- Nem penses, tu és maluco a conduzir.

O detective encolheu os ombros.

- Também, não é que seja preciso tirar carta de condução para uma coisa
dessas... não anda a mais do que meia dúzia de quilómetros por hora, se
tanto...

Myra lançou-lhe um olhar frio.

- Para tua informação, eu tenho carta de condução, está bem?

- Tirada na Terra?! - perguntou Paulo.

- Agência «Ases do Volante» de Alvalade, - disse ela e pôs o tractor em
movimento. Com um sorriso, mais branda, acrescentou:

- Eu disse-te que passei anos e anos na Terra, não te disse? Acho que se
somar o tempo todo foram aí uns dez anos, talvez...

- Como é possível que tenhas passado assim tanto tempo na Terra...?

- Ora, passo todas as minhas férias cá... e faço parte da aristocracia
andoriana, não preciso de trabalhar para viver, - acrescentou, à laia de
explicação, como se a palavra lhe causasse repugnância.

- Mas vinhas sempre naquela nave...? - balbuciou Paulo, cada vez mais
espantado. - Como é que não te detectavam? 'Pera aí, para onde é que estás a
ir?

- Beja fica naquela direcção; ou melhor, a estação de combóio, - retorquiu
ela simplesmente.

- Bem pensado, - murmurou Paulo. Não tinha o menor sentido de orientação. -
Como é que conheces isto tão bem?
Myra lançou-lhe um olhar de desprezo e não foi preciso dizer mais nada.
Paulo encolheu os ombros. - Ok, ok, já percebi... mas não respondeste à
minha primeira pergunta.

- Claro que não vinha sempre naquela nave, - disse Myra.

- Ah. Então...?

- Eu tenho três naves, - disse ela calmamente. Depois riu-se. - Oh, não
fiques assim tão espantado! Sim, eu sei perfeitamente que sou uma menina
mimada com um papá rico. Que queres? Eu já disse que não concordava com o
sistema político de Andor. Que isso era uma das razões que me leva a
escolher a Terra como destino turístico. Mas não quer dizer que seja
totalmente idiota. Se o dinheiro e o poder do meu pai a me permitem
certos... luxos, porque não hei-de tirar partido deles?

- Estou a ver... - Paulo estava zonzo. - Mas a nave não era nunca
detectada...?

- Claro que não, tolinho! Senão como é que julgas que conseguíamos aterrar?
Viste o que aconteceu quando fomos detectados desta vez? Tivemos azar, foi
uma avaria, a porcaria do Lard esqueceu-se de verificar o sistema de
camuflagem... eu bem lhe disse para fazer a revisão à nave, mas não, ele é
mais teimoso do que eu...

- Lard?

Myra suspirou, e a sua voz não soou com tanta arrogância como anteriormente.

- O meu namorado... ou era. E o melhor amigo dele... enfim, tu viste-los.

Paulo permaneceu silencioso. O tractor avançou alguns quilómetros por
estradas rurais, Myra escolhendo aquelas que tinham mais árvores. Ainda não
se viam soldados nas colinas, mas não tardariam a aparecer; o velho tractor
andava pouco mais depressa do que um homem numa bicicleta, se tanto. Iriam
levar horas a chegar a algum lado... depois Paulo pensou que provavelmente a
estação de caminhos de ferro estivesse fora da cidade - era o normal - e
talvez ficasse para o lado de cá de Beja... era a única esperança, claro.
Depois era preciso que passasse um combóio... mas aí teríam muito mais
hipóteses. No pior dos casos, poderiam apanhar um táxi na estação que os
levasse para Beja. E a partir daí seria muito, muito difícil que os
apanhassem.

Mas de momento ficou silencioso. Pensou na ironia da situação. Sim, claro,
ele, Paulo, apenas pensava que era uma espécie de herói romântico, que
salvara uma extraterrestre viva das garras manipuladoras do Exército e do
Governo (para o qual, ainda por cima, estava a trabalhar como funcionário
público). A prova de existência extraterrestre, mesmo à sua frente! A
verdade, mais cedo ou mais tarde, haveria de vir ao de cima!

Contudo, no fundo, estava a ser egoísta. Aquela extraterrestre não era
absolutamente nada do que se pensaria dum representante de uma civilização
mais avançada. Não era um astronauta, um cientista, um diplomata, um
mensageiro da paz galáctica... Era uma jovem, humana, arrogante, convencida,
filha mimada de pais ricos, que tinha vindo fazer turismo com o namorado e
um amigo. Que coisa mais ridícula! Uma pessoa vem fazer férias ao Algarve e
é abatido pela Força Aérea. Morre o namorado, morre o amigo; ela sobrevive,
apenas para ser colocada numa cela para ser interrogada, depois talvez
dissecada, e tudo isto abafado pelos militares. Foge com um detective da
Judiciária que arrisca a carreira e a vida para a salvar. E ambos neste
momento estão num tractor velho, sob o sol sempre abrasador do Alentejo, a
fugir de soldados armados que a qualquer momento podiam emboscá-los... qual
emboscada, quando viessem, seria para atirar a matar, sem sombra de dúvidas.
Que cretinisse!

- Desculpa? - perguntou Myra, e Paulo reparou que tinha falado em voz alta.
Corou, mas por trás da lama e do pó não se notava.

- Nada... estava a divagar... - disse, embaraçado.

- Bem, divaga à vontade. A estação é já depois daquela colina, - disse ela,
apontando. Paulo não via nada, mas não tinha a menor dúvida que assim fosse.
O tractor subiu pacatamente o caminho rústico, monte acima.

- Estava a pensar que a humanidade... quero dizer, os terrestres devem-te
montes de desculpas... abaterem a tua nave, matarem os teus... amigos, -
disse, engolindo em seco.

Ela encolheu os ombros.

- Lard era um palerma, não gostava muito dele...

- Não disseste que era o teu namorado?! - espantou-se Paulo.

Myra apenas disse:

- Escolha de conveniência do meu pai, não minha... mas enfim, não merecia
morrer, claro... a culpa foi toda minha, nunca devia ter confiado nele para
fazer a revisão da nave! O pateta nunca tinha viajado para fora do sistema
solar - isto é, do sistema de Andor, quero dizer.

- Também chamam sistema solar ao vosso sistema? - perguntou Paulo, ansioso
por mudar de assunto.

Ela riu-se.

- Andor quer dizer Terra na nossa língua, - explicou. - E a estrela que
ilumina Andor chama-se Sol, claro. Ora, não fiques impressionado, é
perfeitamente natural, praticamente todos os planetas humanos se chamam
Terra e giram à volta de um Sol...

- Portanto, há certas características comuns a toda a espécie humana que se
espalhou pelas estrelas... - matutou Paulo, divagando. O calor apertava com
violência. Desejava ter alguma água...

- Obviamente que sim! Eu disse-te que a evolução foi paralela.

- Mas como começou?

- Sei lá como começou! Ninguém sabe isso, - disse Myra, afastando também o
suor do rosto. Tirando as mãos do volante, prendeu o seu cabelo imundo atrás
das costas.

- É, então, um mistério que vocês também não sabem resolver? - perguntou
Paulo, curioso.

- Claro que não, já te disse que não sabemos tudo, não somos omniscientes.
Nem sequer somos assim tão avançados como isso! Já te expliquei isso...

- Mas a vossa... tua nave... atravessa o espaço, violando as leis
Einsteinianas... isso é fabuloso, está acima das nossas capacidades
tecnológicas...

- Viola o caraças, - disse Myra calmamente.

- Então como...?

- Não faço a menor ideia, não sou engenheira. Tudo o que sei é pilotá-la,
mais nada.

- Mas o sistema de propulsão... que forma de energia utilizam?

- Pastéis de nata, - afirmou Myra, muito séria.

- Quê?! - Ela estava de novo a gozar com Paulo.

- Ora, o que é que julgas que usamos? Fusão nuclear, claro. Até vocês usam
fusão nuclear... ou usariam, se não estivessem tão dependentes dos cartéis
petrolíferos e da indústria automóvel.

- Tens um conhecimento verdadeiramente impressionante de tudo o que se passa
na Terra, - espantou-se Paulo uma vez mais. O tractor tinha atingido o ponto
alto da colina e empreendia a sua descida.

- Bah, - minimizou Myra. - Eu sei ler jornais, sabias? E televisão, e rádio,
e Internet, e sei lá que mais formas de noticiários vocês têm. Não é que
sejam grandes segredos...

- Mas... Myra... ok, fusão nuclear, faz sentido, claro... mas as vossas
naves tinham poltronas, e casas de banho...

- E depois? Os vossos aviões também os têm, - disse ela, como se eu fosse um
provinciano que nunca tivesse voado.

- Bem... mas os nossos aviões estão sempre sujeitos à gravidade do planeta
Terra.

- Ah, estou-te a perceber... sim, temos um gerador de gravidade a bordo.

- Como é que isso funciona?!

- Brincadeira de crianças. O que acontece quando duas ondas com a mesma
polaridade e com a mesma direcção, mas com uma delas desfasada de 90 graus,
se encontram?

- Não sei...

- Ignorante, - disse ela com desprezo. - Anulam-se mutuamente. Sabias disso?

Paulo balbuciou que se lembrava vagamente de ter ouvido isso nas aulas de
física.

- Vocês usam isso para criar sistemas de isolamento acústico. O que temos é
um gerador de gravitões que faz isso. Serve para criar gravidade artificial
ou anti-gravidade, conforme quisermos. Nada de mais simples. Trivial, -
acrescentou.

- Mas não existem gravitões...

- Ah sim? Muito me contas, - troçou ela. - Ainda há pouco dizias que não
percebias nada de física!

- E presumo que vocês dêem isso no liceu também?

- Não, palerma. Vocês dão isso no liceu! Estudam as equações de Maxwell.
Estudam as fórmulas da uniformização do campo eléctrico com o magnético. Ok,
podes ter-te esquecido disso. - Depois pigarreou. - Eu também me esqueci
disso. Simplesmente, em Andor e na Aliança, estudamos a uniformização para
todas as forças físicas, eléctrica, magnética, forte, fraca, gravítica... é
tudo a mesma coisa. E desde que tenhas a teoria, podes criar aplicações
práticas. Correcto? Vidé o caso do vosso primeiro lançamento da bomba
atómica... foi uma questão de demonstrar que era possível a fissão nuclear
para produzirem uma aplicação prática - se bem que letal - da dita cuja. Em
apenas anos. Maravilhoso, não é? Vocês estão a uma unha negra de descobrirem
tudo aquilo que tu achas de inacreditável na nossa tecnologia, mas é tudo
incrivelmente banal...

- Assim como viagens no hiperespaço? - troçou Paulo, por sua vez. - Também é
incrivelmente banal...?

- Tudo o que precisas é de uma fonte de energia quase inesgotável, como a
fusão nuclear, e acelerar um corpo até à velocidade que quiseres...

- Mas depois a massa aumenta até se tornar infinita, à medida que te
aproximas da velocidade da luz, - fez notar o detective, furiosamente
procurando recordar-se das suas aulas de física.

- Crias um campo gravítico que aumente de intensidade à medida que te
aproximas da velocidade da luz, lógico. Quando chegas lá, tens teoricamente
uma massa infinita, mas também um campo gravítico de força teoricamente
infinita para suster essa massa. Crias uma singularidade no espaço-tempo
Einsteiniano e podes deslocar-te para onde quiseres a velocidades
teoricamente infinitas, pois o tempo é teoricamente nulo. O resto é mera
engenharia para tornar esses princípios realizáveis de forma concreta. Oh,
não me perguntes detalhes; chumbei várias vezes a Física. Só sei que estas
coisas não são perfeitas. Na prática, nunca se atinge, de facto, a
velocidade da luz, porque não se consegue acelerar até lá, tal como não se
consegue criar um campo gravítico infinitamente forte. Logo, não se atinge o
tempo zero; nem se atingem velocidades infinitas; conclusão: apenas se fica
suficientemente perto dessa singularidade de forma a se viajar muito
depressa pelo espaço, muito acima da velocidade da luz... medida por um
observador externo, claro. Mas dá-se um salto no espaço-tempo; numa semana
viajam-se uns 70 anos-luz, mais ou menos... repete-se o processo várias
vezes até chegares ao sítio que pretendes. Com isso chegas facilmente à
Maior parte dos sistemas estelares mais próximos. Mesmo assim, são uns bons
vinte e tal anos para atravessar a Galáxia de ponta a ponta... e nem pensar
em chegar a Andrómeda, fica longe demais. Seriam dezenas de milênios para lá
chegar.

- Isso é verdadeiramente fascinante... mas as comunicações entre essa
Aliança levam anos e anos até chegar a todos os planetas da Galáxia... -
Paulo via as estrelas a girarem em torno dos seus olhos. Mas na realidade
era apenas o Sol que o fazia delirar com o calor...

- Nah, temos sistemas de transmissão instantânea de informação, - disse Myra
simplesmente.

- Que usam taquiões...? - arriscou Paulo, recordando-se de uma discussão com
Duarte Nunes dois dias antes, no «Trapos».

- Nunca conseguimos provar a sua existência, excepto matematicamente. Não,
algo de mais simples, e que vocês também conhecem. Os vossos cientistas
desenvolveram aqui há tempos um sistema que permitia literalmente o
teletransporte de fotões, e que julgam ser possível de fazer também com
átomos simples. Nós nunca conseguimos teletransportar átomos - tudo o que
tenha massa aparentemente não funciona - mas conseguimos fazer com que
fotões separados a distâncias enormes adquiram as mesmas características.
Vocês fizeram isso, em laboratório; nós fazemos à escala galáctica. É uma
propriedade que vocês conhecem, mas estão mais entusiasmados com a noção do
teletransporte; nós julgamos bem mais importante a comunicação instantânea.
Não me perguntes como funciona, ok? Também não sei, mas sei que funciona
bem, com fotões. Não funciona com átomos, porque têm massa... mesmo
metendo-os em campos gravíticos fortíssimos, não vamos muito longe. Mas
sabe-se lá, talvez um dia também consigamos fazer teletransporte de matéria,
não sei, - explicou Myra demoradamente.

- Estás sempre a dizer que não sabes nada, mas tens explicação para tudo, -
fez notar Paulo.

- Sabes como funciona um telefone celular? Um automóvel? Um computador? Não,
vejo que não, mas sabes explicar os princípios básicos por trás de cada uma
dessas invenções, que seriam consideradas magia no vosso século dezanove...
mas podias explicar a uma pessoa culta do século dezanove como é que essas
coisas funcionam, mesmo que não tivesses conhecimentos de física suficientes
para construires um telefone ou um chip de silício...

E contra esse argumento Paulo não tinha resposta.

(continua no próximo número)

(c) Luís Miguel Sequeira
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