Retrocedersimetria: paradoxo
Fanzine de FC&F da SIMETRIA.
teixeira moita

Dramaturgo, guionista, realizador, compositor, instrumentista, Teixeira Moita é um escritor traduzido na Alemanha, onde serão em breve encenadas algumas peças da sua autoria. Em 1997, resolveu enviar este óptimo conto para o Concurso SIMETRIA. Esperamos que a sua vasta obra inédita não se esgote assim na FC e que volte a tentar concorrer.


o adn de kafka [1]

A gravidade dos crimes, faz o silêncio? Ou, por outro lado, será que o silêncio é que faz parecer mais graves as coisas?

À partida este era um caso grave. Tanto o parecia ser que a única coisa ouvida até ao momento era o silvo do ar bombeado para dentro da sala. Isso ou uma ou outra voz mais alterada, vinda de outras salas de triagem criminal.

Tanto silêncio fazia-me sentir demasiado as lentes na minha íris. É aí que passa toda a informação no que concerne aos suspeitos a interrogar. E eu bem tentava, forçando a vista, decifrar as informações ali debitadas; mas elas apresentavam-se desfocadas e o áudio há muito que fora à vida.

Adiante. Estaremos em presença da detida n.º 100226.A/2096.8.101. O nome: não sabe, não se lembra, não quer dizer. O costume...

Foi detida num laboratório clandestino de genética muito perto da Cidade-Prisão. Será uma foragida, eventualmente. A Cidade-Prisão tem cerca de 180.000 detidos e todos os anos fogem mais de 1000. E tanto é o medo que, quem parece viver numa cidade-prisão, somos nós e não eles.

Seja como for, dei um passo em frente para sair do campo de recepção de dados, e com a mão desliguei o link.

Fixei a suspeita. Era bela. Estupidamente perfeita como só o podem ser esses espécimes pré-fabricados em laboratórios de genética. Conheci — e até usei — gente dessa: fisicamente perfeitos e mentalmente retardados.

Sentei-me na borda da consola de comunicações. Os velhinhos leds ficaram a piscar no meu rabo. Endireitei-me para me tornar mais ameaçador , cocei a orelha e comecei o interrogatório:

— Então... o que fazia naquele laboratório clandestino?

Ela manteve-se impávida como uma porta quando nos esquecemos do código de acesso.

— Você está ligada, de alguma maneira, aos assaltos a bancos de ADN? — Insisti.

— Não. — Murmura ela, baixando a cabeça.

— Conhece alguém ligado aos assaltos? — Continuei.

— Não. — Continua ela também.

Assopro para o ar, não escondendo a minha falta de paciência para estas coisas.

— E suspeita de alguém? — Inquiro, já pouco crente.

Ela levantou a cabeça e, com um olhar entre o alívio e o temor, diz baixinho:

— Suspeito, sim. Suspeito de uma coisa...

O meu coração deu um salto, eu eu também. Aproximo-me e quase como um pai para a sua filha, pergunto:

— Ai sim?... e suspeita do quê?...

Ela baixa novamente a cabeça e dispara:

— Suspeito que tens um cu de sílica! — E desata a rir fininho, o que me transtornou mais que tudo.

— Deixa-te de espertezas senão essa carinha vai ficar ainda pior do que um fígado recusado! — berrei.

E virei-lhe as costas, decidido a acalmar-me. Mais calmo, encaminho o interrogatório para outra fase.

— Como pode verificar neste holograma — e activo o feixe holográfico, mexendo a minha mão aberta ao nível dos joelhos — você foi detida durante uma perseguição movida a traficantes de ADN. Faça o favor de confirmar os dados.

A tipa, instintivamente ou não, passou os dedos pela sobrancelha fazendo levantar uns quantos grãos luminosos, que ficaram a pairar defronte dos seus olhos. Bolas! Como eu detesto esta moda dos grãozinhos luminosos! Elas põem daquilo em todo o lado: nos olhos, nas orelhas, nas asas do nariz... Sempre aquela porcaria a piscar em volta delas!...

— Importa-se de parar com isso? — Pedi, quase como uma ordem.

— Parar com o quê?! — Arregalou-se ela.

— Isso das luzinhas... — expliquei como todo o desdém possível por aquilo.

— O Prolumen? — espantou-se ela — mas porquê? Toda a gente usa!

— Pois... mas a mim incomoda-me. — Retorqui secamente.

Ela agitou-se um pouco na poltrona anagravítica , e fez um olhar escandalosamente entediado.

— Não há qualquer coisa que me explique os meus direitos? — Expeliu ela.

A questão posta demonstrava falta de conhecimento àcerca da rotina destas coisas. Isso podia significar que nunca fora presa.

— Aproxime-se do holograma — ensino eu — e, com o dedo, chame o pictograma "Civil"; daí acede a um formulário...

— Está bem! — Interrompe ela, irritada — mas que tenho eu de fazer para me ir embora?

Tanta disponibilidade animou-me. Ela confessava e eu ia embora mais cedo... que maravilha!

— Se confessar que participava nos roubos de ADN... — insinuei — ...e beneficiava do produto do roubo para ajudar a conceber seres humanos não-integrados...

— Mas eu não tenho nada a ver com aquilo! — lamuriou-se.

Eu...eu...fiquei um pouco calado e desconsolado por termos de voltar ao ponto zero. E ela insistiu, agora com mais determinação:

— Eu estava nesse laboratório porque quero arranjar culpados, e não consigo arranjar culpados!

A catraia surpreendeu-me com esta. Contudo, com receio que ela abandonasse a narração, inquiri quase doce:

— Os culpados de...concretamente?

— Os culpados da minha situação. — Diz ela, como se eu já devesse ter compreendido. — Vocês da Segurança não procuram aqueles que procedem mal, os culpados? Pois eu quero precisamente confrontar os culpados com a sua culpa!

Esta frase final fez-me estremecer, angustiou-me e assustou-me. E não exagero! O que é que ela disse? "Confrontar os culpados com a sua culpa"? Há algo aqui a não bater certo. Estes seres (chamemos-lhes assim), costumam ter uma inteligência mínima. Indescritíveis laboratórios de genética instalados em sub-sub-caves, concebem estes seres não-integrados com o fim de saciar instintos primários de perversos ainda mais primários. Espera-se então que sejam pouco mais do que cadelinhas falantes. Mas esta... estas frases...

— Por isso eu estava naquele laboratório, quando me apanharam... — Interrompe-me ela os pensamentos.

— Quer dizer...os tipos do laboratório são...culpados! — Tento orientar o raciocínio.

— São culpados! — Levanta-se ela, furibunda. — Uns burlões!

— Uns burlões? Como assim?! — tento entender — Sente-se e explique, por favor.

Ela voltou a sentar-se e acalmou depois de inspirar tal como quem vai contar qualquer coisa desde o princípio. E, realmente, começou pelo princípio.

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por...

TEIXEIRA MOITA


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Maio 98

Paradoxo
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