Retrocedersimetria: paradoxo
Fanzine de FC&F da SIMETRIA.
teixeira moita

Dramaturgo, guionista, realizador, compositor, instrumentista, Teixeira Moita é um escritor traduzido na Alemanha, onde serão em breve encenadas algumas peças da sua autoria. Em 1997, resolveu enviar este óptimo conto para o Concurso SIMETRIA. Esperamos que a sua vasta obra inédita não se esgote assim na FC e que volte a tentar concorrer.


o adn de kafka [2]

— Um dia...um grupo de mulheres do sector de desinfecção do Centro de Pesquisa Theus, teve uma ideia estúpida. Uma delas dormia com um meliante que roubava bancos de ADN. O tipo tinha para venda o material genético original de um cientista alemão, nascido há duzentos anos. — Parou por uns segundos, suspirou e prosseguiu o relato — Enfim...elas juntaram-se, compraram o tal material genético, e mandaram produzir um ser que...O resto já sabe: é a história da vida.

— E para que raio queriam elas um ser não-integrado com esse material genético? — Questionei.

— A estúpida ideia delas seria criar um ser especialmente dotado que fizesse carreira para um dia ser presidente da Theus...Uma vingança , ou coisa parecida.

— E você deve ser o resultado disso... — Concluí.

— Exactamente! — Confirmou ela — Só que nunca consegui chegar a lado nenhum. Nem nos estudos, nem na Ciência...nada! E quer saber porquê? — Eu encolho os ombros e agito a cabeça, com a Maior das honestidades — porque elas foram burladas no ADN! — Levanta-se de um salto e, com os punhos no ar, vocifera: — BURLÕES!!! VIGARISTAS!!!

— Calma! — grito-lhe — Calma e sente-se imediatamente!

A rapariga obedeceu-me, mas o seu rosto fez-se vermelho de ira. E, sem ninguém lhe pedir, continuou a história como quem há muito quer desabafar:

— Os filhos da mãe venderam às mulheres o ADN de um tal cientista chamado Franz Kafka... — aqui ela faz uma outra pausa para tentar equilibrar as suas emoções. Não conseguia. E foi quase em lágrimas que continuou — ...mas esse Franz Kafka não era cientista , nem nada que se pareça!

Agora chora compulsivamente e, de mãos no rosto, milhares de luminosos e coloridos Prolumen desprendem-se, ficando a pairar no ar.

— Quer algum hidrante?... — Tento ajudar.

Ela levanta do rosto uma das mãos e com ela faz-me um sinal de recusa. Fiquei ali a olhá-la sem saber o que sentir ou pressentir. Sim, que na Segurança os pressentimentos contam bastante.

Bem...tínhamos de terminar. Resolvo então dar-lhe uma oportunidade de espraiar a sua história:

— Se esse tal Kafka não era cientista, quem raio era ele?!

— Escritor — gemeu ela — e daqueles mais esquisitos!

— Escritor, o que é isso?! — Indaguei, pasmado.

— Você sabe...aqueles que inventam historietas... — Elucidou-me ela.

— Intelectuais, quer dizer! — Concluo.

— Isso... — Acedeu ela, como se no momento qualquer definição bastasse.

— Pronto... — tentei deduzir — não estava preparada para os maravilhosos desafios da Ciência e Pesquisa...E depois?

O rosto dela transfigurou-se numa careta assustadora. As veias do pescoço pareciam negros tubos amnióticos e os olhos raiavam sangue.

— Imagina — voltou ela à voz alterada — imagina o que é ter genes de escritor num corpo destes?

Realmente o corpo era perfeito e belo; daqueles de nos liquefazer as endócrinas.

— E como acha que será a minha vida? — continuou ela — Colocando tudo em causa, discutindo com tudo e com todos, a desobedecer por capricho, a ter ideais quando já ninguém os tem, a não aceitar críticas...Eu sei lá!!! — Ela encosta-se, abatida, a uma parede defronte, fungou e prossegue: — No outro dia, veja bem, perdi uma fortuna. Tinha arranjado um paspalho com toneladas de crédito e, sabe?, não consegui nada dele...fazia-me lembrar um insecto!! — E desatou num pranto dorido, agora sobre a mesa.

Como em qualquer ocasião em que não sabemos o que fazer, mais vale sermos profissionais. Assim, continuei o interrogatório:

— E que adiantaria ao assunto falar com o laboratório? Já passaram uns anitos...

— Sei lá! — choraminga — estava farta de sofrer sózinha... Sei lá!...

— E porque não tentou ser intelectual? — Sugeri.

Ela olha-me, incrédula, e riposta: — Está maluco? E eu ia viver de quê?!

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TEIXEIRA MOITA


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Maio 98

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