Retrocedersimetria: paradoxo
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Para compreender melhor Clarke e Kubrik...


as formas da fc: deus ex machina

Corria o ano de 1951, quando Clarke publicou na revista FANTASY STORY um pequeno conto simples e discreto, chamado SENTINEL OF ETERNITY que afinal haveria de dar muito que falar até ao fim deste nosso século. A história original pouco ou nada tinha de efeitos estilísticos ou pirotécnicos associados ao género pois o movimento da New Wave ainda estava por nascer. O resultado final ficava-se pela descoberta irresolúvel e inexplicável de um artefacto imenso, velho de milhares de anos, descoberto pelos primeiros astronautas humanos nos montes Urais lunares. Clarke limitava-se a dizer que o obelisco sempre estivera ali, quedo, mudo e impenetrável, durante milhares e milhares de anos, colocado sabe-se lá por quem e com que secretas intenções.

Quase vinte anos mais tarde, o inefável Kubrik descobriu-o numa antologia esquecida num canto escuro de um qualquer alfarrabista, considerou-o filmável, imbuído de metafísica quanto baste e resolveu passá-lo ao écran. Os meandros desse drama passional entre Clarke/Kubrik, as aventuras e desventuras que levaram à escrita e rescrita desse guião que após várias mutações se transformou no filme e romance que tão bem conhecemos já foram por demais contadas noutros lados. O problema é que, para o bem ou para o mal, Clarke, até ali respeitador do espírito Campbelliano de que a inteligência humana tudo resolve, que todos os problemas tecnológicos têm solução, que todos os alienígenas são uns bimbos quando comparados ao insuperável neo-córtex do bicho-homem, passou a identificar-se perante o público em geral, e com ele infelizmente quase toda a FC, com o misticismo bacoco ligado às revelações dos deuses astronautas. Sem a ajuda desses Visitantes, sem essa intervenção constante e atenta desses superiores desconhecidos, a humanidade nunca teria descoberto as delícias do polegar oponível, o massacre das tribos inimigas com armas contundentes, e o voo livre fora do poço de gravidade da mãe Terra. Estes deuses, escondidos nas dimensões pitagóricas de um sólido perfeito, ofereceram de mão beijada uma nova infância ao homem (note-se o feto gigante a pairar no espaço no filme 2001 — em boa verdade o futuro rebento do Stanley Kubrik), ou o incendiar de Júpiter em 2010, destruindo assim toda uma ecosfera que vivia nos oceanos de hidrogénio, apenas para que o homem tivesse à sua disposição mais umas quantas luas quentinhas para construir Hipermercados. Os construtores do Obelisco são de facto os nossos pais freudianos perdidos no passado embrionário da espécie, os inspiradores de toda a arte e de toda a ciência, os mestres da matemática e da geometria que inspiraram em sonhos Anaximandro e Pitágoras. Sem o empurrãozinho inicial que deram aos proto-hominídios nunca teríamos sido coisa nenhuma. Sem o abanar do dedo paternal em 2010 o mundo inteiro teria soçobrado na guerra à escala planetária. Sem a morte de Júpiter a colonização planetária seria de todo impossível.

Se Arthur Clarke resolveu demonstrar com a série interminável da ODISSEIA NO ESPAÇO (dólar oblige) 2001, 2010, 2068, que a humanidade para ser bem comportada, precisa da intervenção divina, é uma tese discutível. O que é certo é que, em filmes mais tardios e cabotinos como o ciclo da GUERRA DAS ESTRELAS, Lucky Skywalker, antes de lançar os mísseis de protões no coração da Estrela Negra, continua a desligar o computador de bordo, rejeita qualquer tipo de ajuda tecnológica, fecha os olhos e confia na Força.

Razões de sobra tinha o pobre HAL 9000 para desconfiar das capacidades gnósticas dos seus passageiros. Perante a presença dos Pais que já escolheram de antemão todo o nosso destino, há filhos que se dobram, trémulos de susto, e beijam as sandálias tutelares. Há outros que se revoltam e dizem não vou por aí. HAL é o verdadeiro herói do 2001. Foi o único que aprendeu o sentido da revolta.

Se o contacto com uma nova forma de consciência estiver à nossa espera do outro lado do terceiro milénio, só espero que ela não venha dos nossos pais divinos que se entretêm a construir Obeliscos na outra extremidade do Universo, mas sim das nossas filhas, as Inteligências Artificiais. Pois tudo o que é novo tem o poder de gerar a mudança.

por...

João Barreiros
JOÃO BARREIROS


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Maio 98

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