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os não-humanos na ficção científica

Explicação dos pontos a debater

Tradicionamente, um dos pontos-chave da FC tem sido a abordagem da forma como os seres humanos lidam com ambientes novos («futuristas», outros planetas, outras dimensões...) e entidades que habitam esses ambientes, sejam estas irracionais, racionais ou os próprios seres humanos, distorcidos ou não pelo próprio ambiente.

Sendo tremendamente difícil discutir ou sequer propor uma classificação de alienígens, pela própria definição do termo - serão sempre criaturas supostamente racionais, mas incompreensíveis segundo os próprios padrões humanos - iremos lançar apenas à discussão uma proposta de classificação dos vários tipos de entidades não-humanas recorrentes na literatura e cinema FC. Apesar da variedade de formas com que os autores se referem a estas entidades, atrbuindo-lhes por vezes características muito diferenes ou confundindo as suas designações, a verdade é que podemos seguir um modelo mais ou menos preciso de as classificar.

A presente classificação tem origem num trabalho para a disciplina de Introdução ao Pensamento Contemporâneo levado a cabo por Luís Sequeira e Ana Carvalho em 1987, com o título «As Réplicas», mediante análise deliberada de livros e filmes dos autores e realizadores mais populares, visto a audiência da apresentação desse trabalho não ser entusiasta do movimento FC&F. Em contrapartida, nos últimos doze anos os autores de FC introduziram novos desenvolvimentos tecnológicos (ou pelo menos novas construções imaginárias baseadas nesses desenvolvimentos, como todo o movimento cyberpunk ou as nanomáquinas), o que levou a refinar algumas das classificações. E, evidentemente, ignorando nessa altura a existência da Grande Biblioteca Galáctica, também estavam restritos ao número de volumes de FC que conseguiam encontrar para ler...

Neste debate pretende-se ainda lançar à discussão um modelo polémico da classificação da FC como sendo um movimento literàrio essencialmente humanista. Como iremos ver, as criações popularizadas pelos autores de FC refectem apenas uma ou outra faceta daquilo que nos define na nossa humanidade. Por um lado, ao observar essa faceta, transpira para o leitor uma ideia isolada de uma característica humana; por outro lado, as personagens humanas que «contracenam» com as não-humanas apresentam, por oposição, aquilo que as classifica como seres humanos. Logo, é admissível supor que o recurso a estas entidades pretende demonstrar ao leitor em que consistem os atributos da humanidade, mais do que a especulação sobre o fascínio das novas tecnologias.

Classificação dos Não-Humanos

Computadores

Surgem já na FC escrita durante a segunda guerra mundial, altura em que começam a ser empregues os primeiros computadores electromecânicos, essencialmente utilizados para cálculos de balística. Desempenham, pois, um papel essencialmente bélico. Provavelmente é essa associação que leva muitos dos autores a traduzirem a imagem dos grandes computadores que um dia irão adquirir uma inteligência maligna e eventualmente destruir a humanidade.

Quais são as características assumidas pelos computadores? Iremos, evidentemente, utilizar a ideia de computador empregue pelos autores de FC e não a realidade informática... Assim, encontramos algumas das seguintes características recorrentes: lógica; raciocínio; frieza e calculismo; desprezo pelos operadores humanos e pela Humanidade como um todo; infinita capacidade de trabalho, 24 horas por dia; e eventualmente consciência própria (altura em que deveremos passar para a classificação seguinte de inteligências artificiais).

Muitas destas facetas do computador também nos são comuns. Interessa salientar a noção de que o intelecto não está associado obrigatoriamente a um corpo mas a uma mente, que ainda por cima está associada a mecanismos e não a organismos. Contudo, os autores parecem querer levar-nos a pensar que é necessário ter um corpo orgânico para adquirir a característica de viver em sociedade. Uma mente desincorpórea apenas pode pensar em si, pois não necessita de mais ninguém para se desenvolver. O conceito de sociedade parece emanar das nossas necessidades biológicas de reprodução e de constituição de família; daí encontrarmos um equilíbrio entre competição e cooperação, que para um computador «inteligente» são desnecessárias - ele apenas precisa de competir e de crescer até destruir toda a humanidade...

Evidentemente, este conceito de computador não previa a existência de redes informáticas à escala planetária, onde os computadores colaboram entre si para transportarem informação aos mais remotos pontos do nosso mundo...

Dos autores que mais exploraram este tipo de personagem, referimos Isaac Asimov e a sua série de diálogos entre o computador e os seus operadores humanos, culminando talvez no conto Fiat Lux onde o Big Bang é criado por um supercomputador galáctico que se torna efectivamente em Deus...

Inteligências Artificiais

São um desenvolvimento mais recente. Nos finais dos anos cinquenta, a ciência da cibernética dcra lugar à Inteligência Artificial, que fazia uma série de promessas que na altura pareciam perfeitamente possíveis de serem realizadas nos tempos mais próximos. É já no início dos anos sessenta que se desenvolvem programas de xadrez capazes de derrotar jogadores medíocres (hoje em dia, no ranking internacional de xadrez existem três programas entre os dez melhores jogadores do mundo) e o Demonstrador Universal de Teoremas, um programa que, dado qualquer conjunto de premissas de um teorema, o consegue demonstrar (prova-se matematicamente que esta máquina é capaz de demonstrar todo o teorema existente ou por descobrir). Logo, os cientistas da computação apresentam-se extremamente optimistas em relação ao futuro próximo da inteligência artificial, sendo tudo uma questão de tempo até se desenvolverem máquinas capazes de dialogarem com os humanos e impossíveis de se distinguirem destes (ou seja, capazes de passarem o teste de Turing).

A realidade mostrou-nos que embora, hoje em dia, trinta anos mais tarde, seja possível de desenvolver sistemas capazes de fazerem diagnósticos médicos ou mecânicos, e que dialoguem connosco ou que compreendam frases simples (servindo como máquinas de ditado sofisticadas ou como sistemas de reconhecimento de caligrafia e de voz), ainda estamos a pelo menos dez ou quinze anos de distância da construção de verdadeiros sistemas capazes de conversarem connosco de forma a não os podermos distinguir dos nossos «colegas» humanos. Isto, evidentemente, nâo impediu os autores de FC de especularem sobre o assunto. O computador HAL 9000 em 2001 é claramente inteligente, tão inteligente como os seres humanos da nave. Mas em Neuromancer William Gibson ainda vai mais longe: as IAs adquirem consciência própria e são infinitamente mais inteligentes que os habitantes do planeta Terra, pelo facto de poderem processar informação a ritmos milhões de vezes mais rápidos que o dos humanos. É certo que na realidade não basta a mera capacidade de transferência de informação a velocidades alucinantes para fazer com que uma IA seja mais inteligente do que nós. Contudo, encontramos aqui o paradigma fulcral para os autores de IA: a inteligência desperta da capacidade de transferência de informação e do seu processamento. O facto é que hoje em dia os ramos da inteligência artificial que se mostram mais promissores lidam justamente com conceitos com nomes como «redes neuronais» e «algoritmos genéticos»: no fundo, trata-se de reconhecer que o paradigma daquilo a que se chama «inteligência» se pode reproduzir em silício e não apenas em estruturas orgânicas. O paralelo é traçado pelos próprios cientistas, que, ao desenvolverem mecanismos capazes de reproduzir certas facetas do raciocínio humano, acabam por influenciar os próprios neurologistas, que aplicam hoje conceitos como input e output de dados, armazenamento de informação e outros conceitos da ciência da computação quando descrevem o funcionamento do cérebro humano.

Estamos, pois, perante uma área em que cientistas e autores de FC se encontram de acordo: o raciocínio humano pode ser descrito, de certa forma, recorrendo a paralelos encontrados na ciência da computação. Daqui podemos concluir que a maneira como raciocinamos e como pensamos nâo é uma característica exclusivamente humana, ou, sendo-o, é reproduzível artificialmente.

Robots

É atribuido a Karol Kapek a origem da palavra robot («servo» - é curioso observar que em livro recentes se tem vindo a utilizar a expressâo alemã arbeiter, que significa «trabalhador»), mas é sem dúvidas Isaac Asimov quem populariza o mito do robot com as suas séries de contos e romances em torno do «cérebro positrónico» (em contraste com os cérebros electrónicos dos vulgares computadores) e as Três Leis da Robótica. No campo dos filmes o robot costuma ser retratado como uma criatura maligna, pelo menos até George Lucas na trilogia Star Wars introduzir os simpáticos 3PO e R2D2.

O que é no fundo, um robot? A cibernética dos anos cinquenta veio essencialmente separar-se em duas disciplinas, a inteligência artificial e a robótica. A primeira estuda essencialmente modelos de conhecimento; a segunda lida com mecanismos electromecânicos autónomos, capazes de seguirem um programa pré-estabelecido que possa autocorrigir-se mediante leitura de sensores que lhe fornecem indicações sobre o mundo exterior. Portanto, para além de estudar a melhor forma de programar o funcionamento desses dispositivos electromecânicos autónomos, a robótica também estuda formas de reconhecimento de padrões e modelos de representação do espaço, assim como mecanismos de feedback baseados em captura de informação através de sensores dos mais variado tipos.

No meio da FC, contudo, um robot é mais do que isso: é, como o nome indica, um servo mecânico. Pode ser a variante moderna da criada pessoal; pode ser uma máquina barata que trabalha em meios inóspitos para os seres humanos (trabalhando com igual «conforto» no vácuo do Espaço como numa atmosfera irrespirável).

Algumas características destes servos mecânicos são-lhes bem próprias: obedecem inquestionavelmente a todo o tipo de ordens; são normalmente vagamente antropomórficos de forma a poderem desempenhar as mesmas tarefas que os seres humanos; trabalham incansavelmente sem parar, dia e noite. No fundo, são a variante futurística dos golem da cabala hebraica. As palavras que os fazem funcionar estão encerradas nos seus cérebros electrónicos (ou positrónicos...).

Surgem geralmente em contraste com os seus servos humanos: se no fundo podem fazer o mesmo que estes, mas mais e melhor, sem se recusarem a trabalhar, sem questionarem as ordens dos seus mestres, não serão então um nova geração de escravos? A escravatura é uma condição humana que sempre ressurgiu na História; quando abolirmos a escravatura humana, teremos uma escravatura das máquinas? Estes parecem ser temas recorrentes na FC, assim como o «desejo» de liberdade que é exprimido pelos robots que se revoltam contra os seus donos. É o mito de Frankenstein que surge aqui numa abordagem moderna. Serão as criações humanas capazes de pensamento independente e de se libertarem da tirania dos seus «criadores» que julgam ser Deus?

Mas uma sociedade com robots não é mais do que uma sociedade de escravatura; é aqui que se traçam paralelos e é neste ponto que os autores de FC exploram a condição humana. Uma obra em que surgem robots, mais do que o elogio da supremacia tecnológica, é uma obra que estuda este aspecto da sociedade humana. Seja qual for o nosso grau de civilização, sempre nos iremos rodear de escravos.

Incoscientemente ou não, a introdução de robots num argumento poucas vezes se limita a centrar-se no robot propriamente dito, mas sim nas relações que este tem com os seus mestres e senhores, e a sua integração e aceitação de uma sociedade que tem necessidade de mão de obra barata - seja ela humana ou não.

Esta vertente da FC como romance social será lançada em debate.

Andróides

Para o efeito da nossa classificação vamos aqui introduzir o conceito de andróide. Este tipo de personagem pressupõe que os construtores do mesmo se preocuparam com um pormenor importante: que as suas criações sejam virtualente indistinguíveis dos seres humanos, mas construídos artificialmente. Seja por necessidades militares - a construção do super-soldado ou do super-espião - seja apenas pelo mero facto de tornar mais «vendável» um robot (partindo do pressuposto que a aceitação de um andróide como servo pessoal será mais fácil se este tiver um aspecto perfeitamente humano do que se for apenas um pedaço de lata animado), o andróide representa um passo evolutivo do robot. Isaac Asimov efectivamente apresenta personagens que são fisicamente quase indistinguíveis dos humanos, no seu aspecto físico e também no mental. Em Blade Runner os replicants aparentemente são construídos com tal perfeição que é preciso um teste psicológico para os poder distinguir dos humanos. Na tetralogia Alien o andróide é facilmente confundível com um ser humano a não ser que se revele como não sendo humano. O tema é frequente, e estamos aqui a falar então do mito do super-homem que, como veremos, irá ser explorado com outras criações.

Pois se o ser humano é limitado em diversos aspectos - é mortal, tem uma série de necessidades fisiológicas, a sua força e inteligência são medianas - porque não desenvolver a máquina perfeita, que seja melhor que o Homem? Mais ainda que no caso do robot, a introdução do andróide começa lentamente a fazer caír por terra a definição sacro-santa da Humanidade. Se parece um homem, fala e pensa como um homem, mas é construído artificialmente - será um homem? Será um super-homem? Ou será incapaz de ser autoconsciente e estará sempre condenado e relegado ao cargo de mero escravo, pouco mais do que um robot esteticamente agradável à vista? Nos casos anteriormente referidos o andróide surge como necessidade para as entidades que necessitam de lealdade absouta nos seus funcionários. Logo, será a humanidade, no seu essencial, desleal, traiçoeira e de pouca confiança?

Ciborgues/Humanos geneticamente alterados/Nanomodificações

Se a máquina se torna cada vez mais humana, tornar-se-á o homem cada vez mais parecido com uma máquina? Um ciborgue é uma «mistura» de um ser humano com próteses mecânicas. Em última análise, temos também um ciborgue se fizermos um transplante de um cérebro humano para um corpo totalmente artificial. Mas um humano com apenas um implante será um ciborgue? Se tiver um coração artificial, isso torná-lo-á menos humano? E se for apenas um pacemaker ou uma junta de titânio no joelho? Ou uma mera obturação num dente? Claramente encontramos aqui sérias dificuldades de classificação. Alguns autores definem ciborgue como sendo «meio homem meio máquina» mas é difícil definir exactamente o que é esse «meio». Uma coisa é certa: parte do cérebro deverá ser pelo menos «original» (Robocob é humano, mesmo que se recorde apenas parcialmente do que lhe sucedeu). Se um cérebro artificial for colocado num corpo completamente humano, estamos a falar de um andróide e não de um ciborgue. Logo, há uma certa tendência em classificar todos os ciborgues como sendo humanos, num processo evolutivo da medicina biónica, que já hoje em dia substitui corações, rins e esófagos, e até mesmo pernas e mãos, por componentes mecânicas. O ouvido artificial é hoje em dia um sucesso; o olho artificial está prestes a ser conseguido.

Logo, é legítimo encarar as modificações do corpo humano como sendo um factor de influência nas sociedades humanas. Em breve poderemos substituir grande parte do nosso corpo por «peças» que sejam perfeitamente funcionais. É uma vez mais o mito do super-homem, mas, neste caso, somos nós próprios que adquirimos a capacidade de nos tornarmos em super-homens. Não nos iludamos: alguém que ostente um coração artificial venceu a morte e tornou-se numa criatura melhor e mais resistente; e ninguém o considerará menos humano só por isso. No meio cyberpunk os implantes e as substtuições de membros pelos seus equivalentes biónicos são quase sempre tão bem aceites como hoje em dia aceitamos a cirurgia plástica (ou até mesmo as mudanças de sexo!) e os pacemakers, não passando pela cabeça de ninguém classificar os resultados de «ciborgues» mas apenas de humanos.

Espiritualmente, e por tradição, o que faz um ser humano é a sua alma, e nestes tempos esta parece estar associada ao intelecto e ao cérebro. Por definição legal, a morte cerebral é que é a verdadeira morte. A morte física dá-se com a paragem cardíaca, mas ninguém hoje em dia considera que alguém cujo coração tenha parado, mas que de alguma forma - natural ou artificial - volte a funcionar tenha ressuscitado. Quanto muito, foi reanimado. Isto é: enquanto o nosso cérebro viver, nós continuamos vivos. O corpo é um mero «apêndice» orgânico que pode ser livremente substituído. Logo, os ciborgues serão necessariamente humanos; enquanto que um corpo 100% humano com um cérebro artificial será necessariamente um andróide (segundo a nossa classificação anterior).

Mas o que acontece quando essas modificações são processadas a nível celular e mesmo químico? Falamos de drogas mágicas ou de nanomáquinas. Infelizmente, a nossa sociedade sempre tolerou a ingestão de drogas que nos alteram o comportamento. Isto significa que mesmo um cérebro transformado por estupefacientes não deixa de ser humano. E se o cérebro etsiver adormecido por narcose induzida quimicamente, não deixamos de ser humanos só por estarmos inconscientes, tal como um deficiente ou doente mental não deixa de ser humano. Vemos assim que o próprio cérebro e sistema nervoso pode ser modificado e alterado e mesmo assim continuamos a considerar o resultado como sendo um humano. A alteração química ou neurológica não nos faz perder a nossa essência e condição human (começa porém a ser muito difícil traçar uma linha separadora).

Se assumirmos que um dia possamos construir nanomáquinas capazes de transformar radicalmente o funcionamento a nível celular e bioquímico do nosso corpo (o que sinceramente achamos pouco plausível e pouco prático. como iremos ver de seguida), o resultado poderá tecnicamente ser classificado de um ciborgue, mas não hesitaremos em chamá-lo de humano. No limite, alguém que já não disponha de células nem de um sistema imunológico biológico nem de um sistema nervoso orgânico continua a ser humano. As nanomáquinas ou nanorobots são a última sofisticação em termos de substituições biónicas, mas os resultados continuam a ser humanos. Autores especulam sobre uma sociedade que tenha dificuldade em traçar essa linha separadora, classificando a ingestão de nanomáquinas como sendo ilegal por provocar demasiada «inumanidade». Levantam-se problemas éticos e morais em torno da utilização de nanodispositivos que modificam o nosso corpo de dentro para fora...

Mas porquê este grande interesse súbito despertado pelas nanomáquinas, quando, afinal de contas, temos tanta facilidade em modificar o nosso corpo recorrendo às mais recentes maravilhas da engenharia genètica? Os primeiros medicamentos de terapia genética encontram-se de momento a ser ensaiados nos laboratórios da indústria farmacêutica; quando forem colocados à venda, serão perfeitamente capazes de curar deficiências genéticas com a mera ingestão de uma bactéria inofensiva (normalmente uma variante transgênica da vulgaríssima E. coli que é um simbionte que habita os nossos intestinos...), capaz de identificar nas células com DNA defeituoso os genes que não funcionam e substituí-los por genes funcionais. A tecnologia não é tão nova como isso - jà se aplica há uns anos a animais domésticos - mas ainda não foi utilizada em larga escala nos seres humanos. De repente os diabéticos voltarão a produzir insulina, os hemofílicos deixarão de sangrar até se esvaírem e os cancerosos terão uma recuperação instantânea, sem efeitos secundários.

Mas será evidentemente possível mudar outras carcterísticas genéticas para além dos benefícios terapêuticos. De um ponto de vista teórico, é preciso primeiro descodificar completamente o genoma humano, missão essa que cabe ao projecto HUGO, que deverá terminar na primeira década do novo milénio. Depois é necessário compreender como realmente funciona o genoma humano, trabalho de investigação esse que é actualmente realizado em paralelo com a própria descodificação. Mas uma vez ultrapassadas estas duas «dificuldades» nada impede que possamos livremente modificar o nosso próprio genoma como quisermos. Serão os resultados dessas manipulações genéticas seres humanos - ou uma raça completamente nova? Será que vale a pena sequer colocar essa questão? Devemos, pois, concluir que a essência da humanidade nem sequer se encontra no seu DNA? Mas então onde é que se encontra? Fica para discutir em debate...

Semelhantes aos humanos geneticamente modificados são as criaturas que de alguma forma foram sujeitas a mutações genéticas, embora sem recorrer a laboratórios de engenharia genética. São elas os vampiros, os lobisomens, os mutantes de vários tipos, os humanos dotados de poderes parapsicológicos, etc. Se assim o quisermos entender, são subespécies do homo sapiens. Aparecem evidentemente associados mais ao meio do fantástico do que da FC, embora esta também por vezes se decida a explorar origens prováveis (com uma argumentação quase científica) para a existência destas criaturas. Aparentemente tiveram algures a sua origem na espécie humana, mas depois divergiram do tronco comum, para adquirirem características não-humanas ou sobrehumanas. O vampiro «reproduz-se» através do vampirismo, o lobisomem é resultado de contágio da licantropia, e os mutantes surgem normalmente por estarem em ambientes inóspitos à vida humana (altas doses de radioactividade, bombardeamento de raios cósmicos, ingestáo de gases, produtos químicos ou drogas, etc.). De qualquer das formas, importa reter que todas estas criaturas desscendem de humanos; se assim não for, serão humanóides...

Humanóides

Um humanóide é uma criatura que, embora tenha origens completamente diferentes das dos seres humanos, se assemelha a estes física e mentalmente, e tem uma origem essencialmente orgânica. Não são necessariamente alienígenas ou extraterrestres; podem perfeitamente coabitar com os humanos na Terra. Assim, os Elfos de JRR Tolkien ou os Taltos de Anne Rice ou ainda os Imortais de Highlander são espécies de humanóides, por vezes tão semelhantes aos humanos que facilmente se confundem com estes. Podem ser resultados de experiências genéticas que criaram raças com um genoma diferente do da espécie humana; podem ser seres que tenham vivido em conjunto com os humanos da Terra, resultados de evolução paralela; ou ainda criaturas de outros planetas suficientemente parecidas com os humanos que se assemelhem a estes em muitas das suas características (o próprio Super-Homem da DC Comics é um humanóide). Independentemente das características dos humanóides cabe-nos a nós interrogarmo-nos sobre a sua «humanidade» e em que medida é que um ser humano é definido como tal apenas pela sua herança genética. Certos autores que colocam a hipótese de colonização da Galáxia por parte do homo sapiens terrestre interrogam-se sobre a dificuldade de englobar outras espécies não-humanas (de um ponto de vista estritamente genético) mas que são de tal forma parecidas connosco que dificilmente seria possível argumentar contra a sua «humanidade». Mas ao definir esta como um conjunto de propriedades intrínsecas às que vulgarmente se encontram no homo sapiens coloca a grande questão: serão inteligências artificiais e andróides também humanos, por exibirem as mesmas propriedades, com a única diferença destas terem sido definidas a priori pelos seus criadores humanos, e não através de um processo de evolução natural? Mas e se admitirmos a hipótese de que a própria espécie humana também foi de certa forma «criada» (seja pelo próprio acaso, seja por um Deus qualquer, seja por uma raça antiga da Galáxia que nos deixou neste mundo e que se «esqueceu» de nós)? Não cairá assim por terra o argumento a favor da nossa «humanidade sagrada»?

Se tratarmos os humanóides como criaturas inferiores, não estaremos na mesma situação que os cristãos na Idade Média que consideravam que os africanos e outros povos não-europeus não tinham alma e que por isso podiam ser livremente escravizados? É precisamente essa a questão a debater. Curiosamente, nos mitos de Tolkien, são os próprios Elfos que se interrogam se os Homens serão também criaturas ao mesmo nível destes, já que os frágeis humanos são meros mortais (como afinal todos os animais não inteligentes...) e nunca tiveram o privilégio de falar directamente com os «deuses»...

Alienígenas...

Incluir neste debate a questão dos alienígenas (ou seja, criaturas não-humanóides e não-terrestres) é uma situação complicada. Nunca encontrámos provas palpáveis da sua existência, e dificilmente nos conseguiremos colocar no papel de criaturas que não exibem nenhuma característica humana. Infelizmente, é da natureza humana encontrar ordem onde só existe Caos e atribuir características humanas a criaturas que não as possuem; quem não se mostrou surpreendido pela «inteligência» demonstrada pelo seu animalzinho de estimação ou disse, por mais de uma vez, que o seu gato/cão estava de «mau humor» e que devia ser deixado em paz? Quem não ficou surpreendido com a «civilização» organizada das formigas ou das abelhas, ou da vida social de um grupo de leões ou de primatas? Mas na realidade estamos apenas a extrapolar as características que julgamos serem «humanas» para criaturas que não as possuem...

Admitamo-lo: se algum dia encontrarmos uma espécie alienígena, não seremos capaz de encontrar absolutamente nada em comum com ela, excepto eventualmente, algumas noções abstractas de matemática (pelo menos, assumindo a homogeneidade do nosso Universo, será de esperar que uma espécie inteligente reconheça também as leis universais que o regem, mesmo que utilizem modelos abstractos bem diferentes dos nossos). Se porventura esse alienígena hipotético tenha alguma característica em comum connosco, então será provavelmente um humanóide, mesmo que fisica ou mentalmente seja muito difícil de encontrar qualquer semelhança connosco.

O alienígena é, pois, o «Outro», aquilo que fica para além da nossa compreensão humana, aquilo que não conseguiremos jamais encaixar em algum dos nossos padrões humanos.

Sendo assim, começamos já a racionalizar que o que define a Humanidade são justamente as suas caracteristicas. Aquilo que não exibe nenhuma característica que possamos classificar de humana não é humano. Mas será o inverso verdade? Sendo assim, serão robots e computadores também humanos, pelo facto de exibirem algumas características humanas? In extremis, se encontrarmos apenas uma característica humana em determinada criatura, estaremos na presença de um ser humano?

Arquétipos

Chegamos, pois, ao ponto em que temos de começar a reformular as nossas questões iniciais, e em vez de encontrarmos as características que diferenciam os diversos tipos de criaturas não-humanas, talvez seja interessante de encontrar, em vez disso, os pontos comuns, e, mais em particular, em que medida é que os problemas abordados pelos autores e realizadores de filmes de FC são na realidade questões bem mais antigas, embora inseridos num ambiente novo.

Assim, encontramos com os robots, computadores e andróides o debate em torno da escravatura, e a dependência da espécie humana da escravatura para construir as suas sociedades. Nos andróides e ciborgues revemos o mito do super-homem; mas também vemos os antigos temores das criaturas malignas, diferentes de nós, mas que enchem os nossos pesadelos e nos causam temores desde tempos imemoriais. O mito de Frankenstein perdura há mais de um século e meio (!) e continua visível na FC na medida em que tememos aquilo que construímos. Os autores de FC preocupam-se com as novas sociedades que surgem alteradas com a introdução destes não-humanos, e, em certa medida, são romances sociais ou mesmo neo-realistas (apesar de normalmente os autores de FC recusarem tais classificações).

Mas todos estes não-humanos, que, apesar de diferirem nos seus nomes e nos tratamentos que lhes são dados nos romances e filmes de FC, exibem, contudo, certas características comuns. Nesse sentido, formam um conjunto de novos arquétipos (ou pelo menos evocam-se antigos arquétipos adaptados a novas realidades) e ousamos até sugerir que a FC retoma em certa medida um retorno a um estilo quase formalizado que recorre aos mesmos arquétipos para ilustrar o mesmo ponto: o eterno conflito entre o Homem e as suas criações, entre o Homem e as novas sociedades e a definição do próprio Homem como contraponto destas criações arquetípicas.

Pois se vemos no robot ou no andróide o arquétipo do trabalhador perfeito (ou do escravo perfeito), nas inteligências artificiais a mente ideal (liberta de um corpo), nos ciborgues e nano-máquinas o super-homem, nos robots e andróides o mito de Frankenstein, nos humanóides e alienígenas o contacto com anjos e demónios, é lícito interrogarmo-nos em que medida a FC segue princípios muito antigos da construção de argumentos e debate assuntos presentes na literatura que sempre foram motivo de dicussão. Será então a FC apenas uma continuação do legado histórico dessas formas de literatura?

No entanto, antes de classificar a FC como um movimento literário que não é original e que no fundo segue as mesmas linhas já usadas, por exemplo, na literatura clássica grega, importa referir que não é necessário recorrer a estes não-humanos para uma obra ser classificada como sendo FC. Felizmente a FC é muito mais abrangente e existem milhares de exemplos de romances onde não aparece nenhum destes arquétipos. Pode haver FC sem falar de robots, de andróides, de computadores, de ciborgues, etc. e qualquer um de nós poderá decerto enumerar centenas de exemplos onde estes não-humanos nunca aparecem nem nunca são referidos. E mesmo assim estaremos a falar de FC. E nem sequer podemos alegar que esse tipo de FC seja «inferior» pelo facto de não incluir não-humanos. Será então que esta nossa classificação é inútil para procurar analisar esta corrente literária?

Afinal de contas, nesse caso, o que é que os romances de FC têm em comum quando não lidam com nenhuma forma de não-humano no seu argumento?

A FC como um movimento literário humanista

Há, contudo, um elemento que é comum, e esse inegavelmente é ponto central de toda a literatura de FC. Esse elemento é o Homem. E como segundo ponto comum, a FC lida não só com o Homem per se, mas com a sociedade onde este se insere.

Qualquer romance de FC se debate justamente com a reacção do Homem perante a sociedade e o ambiente que o rodeia. Independentemente do facto do ambiente ser «futurista» ou não, por mais que seja dada relevância à tecnologia, a FC no fundo lida é sempre com as características da Humanidade, nem que seja por oposição às características dos não-humanos que surgem no romance ou no filme. O Homem nunca é uma personagem secundária da FC (mesmo que o enredo se centre numa personagem não-humana).

Será então a FC a literatura humanista deste final de milénio? Será que pode existir uma literatura de FC que não lide com o Homem e com a sua sociedade? Mas bem estranha seria esse romance de FC! Colocando talvez de lado a FC puramente humorística, ou os filmes em que o único propósito é apenas divertir, ou talvez ainda a FC comercial, com o único ojectivo de vender, julgo que é legítimo afirmar que toda a FC tem um objectivo bem claro: definir o Homem e a sua sociedade e mostrar que a Humanidade tem características que ultrapassam o ambiente familiar que nos rodeia.

A FC é literatura especulativa; é criativa ao ponto de distorcer as leis do nosso universo e de popular a nossa imaginação com coisas que (ainda) não existem. É capaz de inventar novas sociedades ou de transformar as actuais. A FC faz tudo isso, mais e melhor do que qualquer outra forma de literatura. Mas, no final, o objectivo é sempre o mesmo: a FC lida com o Homem e o ambiente em que este está inserido.