Retrocedersimetria: ficção
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o curso
por Ana Vasco <[email protected]>

Decidira inscrever-se no curso. A dar os primeiros passos na vida literária, achou que deveria envolver-se em actividades relacionadas com o mundo em que queria entrar. Participar num curso sobre "Literaturas Malditas" não era bem o que ela ambicionava mas constituía já um começo. Assim, inscreveu-se, na esperança de que este passo fosse o primeiro de muitos outros, que a conduzissem aonde pretendia chegar.

Fez as malas, telefonou aos pais dizendo que ia para Cascais e partiu no seu velho carro. Tinha feito reserva num pequeno hotel, perto do mar. Um luxo que poucas vezes poderia conceder a si própria mas, uma vez que iria passar uma parte das suas férias neste curso, decidiu aproveitar ao máximo a ocasião.

Já na recepção do hotel, enquanto esperava pela chave do quarto, reparou num outro hóspede que acabava de chegar. Notou que trazia pouca bagagem. Provavelmente iria passar apenas uma noite. Talvez um técnico numa viagem de negócios ou...

- A sua chave, minha senhora.

Mariana olhou para o recepcionista do hotel que lhe interrompera os pensamentos. Pegou na chave, agradeceu-lhe e subiu. Já no quarto, e depois de largar as malas, correu as cortinas e abriu a janela. Na varanda, uma suave brisa afagava-lhe o rosto. Lançou os olhos pela noite. O reflexo da lua nas águas calmas da baia, as luzes da marginal, enfeitiçavam-lhe o olhar. Estava feliz por ter vindo.

Dormiu tão profundamente que não acordou a horas. Atrasada, saiu do hotel. Nem um táxi à vista! Como se não bastasse, esqueceu-se do folheto com a morada onde iria decorrer o curso. Quando voltou, um táxi esperava por ela à porta do hotel. Dir-se-ia que havia algo apostado em a atrasar e que agora se arrependera! Com toda esta confusão, chegou já na altura das apresentações.

Tentando sentar-se o mais rapidamente possível, inspeccionou a sala num relance, um pouco atrapalhada. À primeira vista não descobriu nenhum lugar vago. Por uns instantes permaneceu de pé, junto à entrada, um pouco atrapalhada. Alguém lhe tocou no braço.

- Há aqui uma cadeira vaga.

Sem olhar bem para ele, aceitou e sentou-se. Estava ansiosa por se misturar com o resto da audiência. Por sorte o orador não pareceu tê-la notado.

Já sentada, lembrou-se que não agradecera ao desconhecido. Aliás, estava consciente de que nem sequer olhara para ele.

Virando-se para o seu lado, agradeceu. Ele levou o dedo aos lábios a pedir silêncio, ao mesmo tempo que lhe sorria. Mariana sentiu-se corar. O desconhecido que lhe oferecera a única cadeira vaga na sala era o hóspede da noite anterior. Podia notar agora que era dono de uns lindos olhos azuis. O seu rosto, apesar de não ser bonito, tinha algo que o tornava atraente. Talvez o seu sorriso, tão cativante. Mariana ficou imediatamente rendida à sua simpatia.

Tentou concentrar-se no que o orador estava a dizer. Notando o seu ar perdido, ele disse-lhe baixinho.

- Ainda não começou a matéria propriamente dita. Está só a fazer as apresentações. Já agora, chamo-me Raul.

- E eu, Mariana.

Durante esta primeira sessão, pouco mais falaram. De vez em quando, trocavam uns olhares. Mas tanto Raul como Mariana mostraram-se interessados durante toda a exposição.

Mariana estava satisfeita, pois pela introdução parecia que o curso iria ser proveitoso. Contrariamente ao que ela chegara a pensar, não iriam falar apenas de ficção cientifica ou literatura de terror. O curso era mais abrangente, focando vários temas ligados à criação literária. Satisfeita por ter vindo, decidiu aproveitar ao máximo esta oportunidade. Mais a mais, tendo por colega do lado alguém à partida tão interessante.

No intervalo para o café, Raul puxou-a para a varanda do Pavilhão.

- Desculpe, mas não nos conhecemos já?

- Não, penso que não.

- Eu acho que já a vi. Talvez numa outra vida anterior.

- Quem sabe - disse Mariana, divertida.

- Penso até que vivemos um grande romance.

- Talvez tipo Romeu e Julieta?

- Não, mais como Bonnie e Clyde!

Mariana desatou a rir. Raul continuou, muito sério:

- Morremos no auge da paixão. Tal como deve ser vivido um grande amor. Ninguém deveria sobreviver ao apagar da chama.

- Mas morrer nova não me agrada nada!, disse brincando.

- Não, nós viveremos para sempre.

- Com tanta conversa, já bebia um café. Para ver se acordo e se chego à conclusão de que tudo o que ouvi é real.

Raul sorriu-lhe e disse:

- Já vi que a impressionei. Agora já posso convidá-la para jantar.

Mariana desatou a rir.

- Nunca me tinham convidado assim. É claro que terei de aceitar...

Durante o resto da sessão, Mariana lembra-se vagamente de ter ouvido falar em vocábulos, ficção, personagens, e outros termos literários. Não conseguia parar de pensar no que lhe acontecera. Sentia-se radiante por ser alvo das atenções de alguém tão desconcertante como o Raul. Os olhos dele hipnotizavam-na. E o que nele mais a cativava era o seu delicioso sentido de humor. Mal podia esperar pelo final da sessão.

Combinaram descer às oito e esperarem um pelo outro no bar do hotel. Mariana quase não descia a horas, pois tantas vezes se vestiu e despiu que perdeu a noção do tempo.

Às oito horas da noite, já Raul esperava no átrio do hotel quando Mariana desceu. Decidira-se por um vestido branco curto, muito simples, mas que lhe caía muito bem.

- Está muito bonita.

- Obrigada. É muito gentil.

Foi o prenuncio para uma noite de sonho. Raul sabia o que dizer, o que fazer para lhe agradar. Mariana, por seu lado, entregou-se às atenções deste estranho, dono de um sorriso que a enternecia. Conversaram durante toda a noite.

Descobriram gostos comuns, maneiras de pensar iguais. Duas almas gémeas que se encontram por acaso, para partilharem uma noite única. Mariana acreditava que uma forte empatia pudesse atrair dois estranhos e torná-los, em pouco tempo, amigos de longa data. Mas ao mesmo tempo sentia-se inquieta. Parecia-lhe algo estranho poder, de um momento para o outro, sentir uma atração tão forte por alguém.

- Meu Deus, as horas. Tenho que ir dormir um pouco, senão amanhã não acordo.- disse Mariana.

- Já?

- É melhor!

- É capaz de ter razão, apesar de não me apetecer nada terminar esta noite.

Chegados ao hotel, Raul despediu-se:

- Durma bem. Até amanhã.

Já quase despontava o sol quando se deitou. O seu pensamento fervilhava. Tudo isto era muito confuso para Mariana. Ninguém podia ser mais cortês, mais atencioso do que Raul o fora naquela noite. Pontos em comum eram muitos. Se por um lado tentava raciocinar friamente em tal coincidência, sentia-se, por outro lado, de tal modo atraída por ele que não conseguia deixar de pensar no seu sorriso, nos seus olhos azuis, que a hipnotizam. Adormeceu a imaginar o que fariam no dia seguinte.

Chegaram os dois atrasados. Sentaram-se nas cadeiras que encontraram vagas, que, por estranho que parecesse a Mariana, eram até muitas naquela manhã.

Tentou concentrar-se no tema, sem o conseguir. O seu pensamento vagueava numa ansiedade sem explicação. Dormira mal, sonhou imenso. Com ele e uma misteriosa viagem que iriam fazer. Exausta, era incapaz de se controlar o suficiente para poder prestar alguma atenção ao que se falava na sua presença.

Raul notou que ela não estava bem. No intervalo propôs-lhe saírem e voltarem apenas na sessão da tarde. Mariana ficou aliviada por abandonar aquela sala onde abafava.

Passearam junto ao mar, conversando. Mariana esqueceu-se do mau estar que tanto a transtornara. Deixou-se embalar pelas suas palavras até que, inesperadamente, Raul a beijou. A principio surpreendida, depressa se abandonou ao seu beijo, invadida por uma leve e doce tontura. Raul puxou-a mais para si e abraçou-a. Mariana deixou-se ir.

Sem saber como, deu por si ao seu lado, no quarto do hotel. Amaram-se até à exaustão, durante toda a tarde, até o sol se despedir. Numa entrega completa e total. Mariana rendeu-se àquela súbita felicidade que a dominava por completo. Teve naquele momento a certeza de que iria viver com ele para o resto da vida.

Raul convidou-a para jantar. Para que todos testemunhassem o seu segredo. Mariana aceitou. Enquanto se vestia, Mariana ainda conseguiu lembrar-se da vida que a esperava após o curso. Estranhou o facto de lhe parecer algo distante e sem qualquer valor. Quando fazia um esforço para tentar perceber porquê, Raul chamou-a. Vendo-a já pronta, beijou-a docemente no pescoço nu e conduziu-a para fora do quarto, abraçando-a.

Após o jantar, Raul levou-a para andarem um pouco pela praia. Estava uma noite linda de luar. Quase se distinguiam os contornos misteriosos da lua. Parecia mesmo que lhe poderiam tocar!

Subitamente, Mariana foi dominada por uma dor aguda no peito, que desapareceu tão subitamente como aparecera. Deixou de ouvir o mar, de sentir a areia debaixo dos seus pés. Um brilho estranho rodeava-os. Aterrada, olhou para Raul, que a sossegou.

- Não tenhas medo. É mesmo assim. Já vais ficar melhor.

Perante o ar incrédulo de Mariana, Raul explicou:

- Esse mau estar é normal e vai já passar. Depois, ficarás melhor.

Sentindo a vida esvair-se-lhe do corpo, Mariana tentou resistir. Em vão. Tinha cada vez menos sensibilidade no corpo. Vendo-a tão assustada, Raul explicou-lhe:

- Em cada lua cheia, um de nós vem à terra para escolher uma companheira. Chegou finalmente a minha vez. Estudei-te durante algum tempo, na esperança de poder vir-te buscar. Já te conhecia e foi a ti que escolhi. Conheço cada desejo teu, cada receio, cada momento da tua vida. Sabia exactamente o que dizer, o que fazer para te conquistar. Só assim te poderia levar comigo. Se me amasses com toda a tua alma!

Um turbilhão de pensamentos atropelava-se na sua cabeça. Mariana continuava sem compreender nada. Queria fazer-lhe mil e uma perguntas. Mas não teve tempo. Raul beijou-a e não sentiu mais nada.

A chuva grossa que caía naquela tarde de Novembro punha em risco a tarefa daquele grupo de pessoas. Sempre que tentavam afixar os cartazes às paredes, às montras das lojas, estes caíam com a humidade. O membro mais velho do grupo, um homem de cinquenta anos, baixou os braços, desalentado.

- É melhor deixarmos para amanhã. Hoje, o tempo já não muda.

E olhando para o rosto sorridente da jovem do cartaz, deixou cair uma lágrima. Passados dois meses desde a última vez que a vira, ainda não acreditava na explicação de que teria fugido sabe-se lá porquê. Não ela, a sua filha! Nunca lhe faria isso!

Contudo, a verdade é que Mariana desaparecera misteriosamente, sem deixar rasto. Em Cascais, na praia, numa linda noite de luar.

 

acerca do conto...
Título: O Curso
Data: 30/07/99
Autor: Ana Vasco
e-mail: [email protected]