Retrocedersimetria: ficção
Página de web fiction da SIMETRIA...
história de tarot
por Carlos Madeira


"E o DEMÓNIO encarnou, fez-se Homem e Viveu entre Nós."
(Livro IV das Mentiras)


Certa vez, a Rainha do Sol Nascente questionou o seu bobo da corte sobre o significado da vida, a verdade e o amor. O Tolo, conhecido pelas suas respostas perspicazes, declarou: "O amor é um mistério e esconde-se por detrás de infinitas portas, intermináveis máscaras, e de todos os que afirmam tê-lo conhecido nenhum fez o mesmo retrato - todos o louvaram, todos o maldisseram. A Verdade... ficaríeis melhor se a ignorásseis, pois é a irmã pobre da Mentira e ver o seu reflexo é ganhar orelhas de burro. Vós agradeceis os meus poemas e cantigas de falsas delícias e desdenhais o sarcasmo profundo e trágico das anedotas que vertem lágrimas de vossos olhos de fogo." O Tolo sorriu com malícia e prosseguiu a sua resposta trocista: "Mas à Vida, perguntais? Ide questionar a Morte, a noite eterna vestida de trevas, se conhece o Dia radiante de Luz! Só o Frio conhece bem o significado do Fogo, porque assistiu ao seu Nascimento e só o Vazio viu o nascer de Todas as Coisas."

A Rainha do Sol do Oriente entristeceu-se com as palavras enigmáticas do Tolo e chorou em segredo no fundo do seu coração, porque - sem o dizer - o amava profundamente. Mas o Tolo não amava nada nem Ninguém, a não ser a sua desdita e Loucura - os dias passava-os contemplando o seu rosto ébrio nos espelhos dourados do palácio e zombando alto de Deuses e Demónios sem Palavras. O Tolo sabia que nada do que dizia significava algo e fugia das memórias que o perseguiam como figuras ocultas na escuridão dos quartos, loucuras vestidas de Horror, horrores vestidos de Loucura.


O Sábio do Reino - que mais não era que um Demónio de carne e Osso - aproximou-se do Tolo após a Rainha ter abandonado, chorosa, a sala real, fechando-se em seus aposentos. O Sábio sussurrou aos ouvidos do Tolo: "Eu Sei onde podes encontrar a Terceira Resposta, aquela à qual não respondestes e que a Rainha buscou em Primeiro." O Tolo tinha esquecido que "EU SEI" era a origem da sua Doença, que o atormentava todos os dias com gargalhadas e ecos de Riso, e jamais rejeitava um Desafio. Por isso, prestou ouvidos à armadilha do Ídolo feito Homem: "Uma vez em todos os Anos, na Noite mais escura e fria do Inverno, a Morte sai do seu palácio e vem ao mundo com forma humana banhar-se nas águas fétidas de um pântano horrendo no meio dos montes dos confins do Reino." O Senhor das Mentiras queria perder o Tolo no Inferno, sabendo que depois o coração da Rainha seria SEU, bem como todo o Reino do Oriente.

Estávamos já no auge do Inverno e o Tolo partiu imediatamente do Palácio e da Cidade do SOL sem deixar aviso fosse a quem fosse. Caminhava para os pântanos da morte nos confins do Mundo onde ia encontrar o Segredo da Vida.

O Tolo comeu nas piores estalagens, dormiu nos piores sítios onde o chão era duro e frio e prosseguiu por zonas inabitadas Escuridão adentro até penetrar no pântano mais sombrio que homem algum tinha visto. O Tolo desceu até às margens das águas negras. No musgo verde e escorregadio que deslizava para as águas esmeralda-escuras um velho degrau permanecia escondido. O Tolo recordou-se então da vanglória deste mundo, do vazio das riquezas e soube que naquela terra inóspita teria existido provavelmente um Império brilhante como os reinos prateados além das águas azuis do Oceano e que mais de uma civilização antiga ter-se-ia afundado nas águas impenetráveis do ódio e cobiça humanas. O último Monarca dessa Era deve ter sido um homem triste e amargo, quem sabe?, O Rei dos Tolos...

O Tolo não teve muito tempo para repousar em cima do degrau antes que uma figura encapuçada vinda do escuro viesse ter com ele. O Estranho era o Demónio e vinha para aprisionar o Tolo da Corte da Rainha do Sol Nascente. O Estranho falou suavemente ao Tolo - "Esperais pela Morte, mas como esperas ver a Morte - que nenhum ser vivo viu! -, sentir o seu ósculo e sair com vida deste Local onde impera a Podridão?!" O Tolo não se apercebera do artifício em que caíra e agora amaldiçoava o Dia em que a sua impetuosidade o levara até esta Terra de Morte e Esquecimento. O Estranho fez então a sua proposta envenenada ao Tolo: "Mas se quiseres nós podemos um Jogo de Adivinha. Se ganhares eu tomarei o teu lugar junto da Morte, deitar-me-ei com ela e morrerei. Voltarei então como fantasma para ti com a resposta ao Enigma da Vida." "E se perder?" perguntou o Tolo, jocoso, pois julgava-se o Mestre das Adivinhas: "Se perderes permanecerás comigo no meu reino para toda a Eternidade.", sussurrou o Estranho numa voz rouca. O ESTRANHO na verdade era um Mestre da FALSIDADE e já tinha ganho a aposta, pois mesmo que perdesse, o Demónio não se pode deitar com a Morte, morrer e descobrir o Enigma da Vida e Morte, porque só os Vivos se podem deitar com a Morte uma única vez no fim da Vida e o Demónio jamais esteve Vivo, alimentando-se, por isso, das desilusões e mágoas daqueles que Vivem.

O Estranho pronunciou então o seu ENIGMA infernal: "É a Serpente que vive e morre nos teus olhos." O Louco soube-se então perdido, pois os insanos jamais fitam as pessoas nos olhos e ainda menos suportam a visão das suas memórias gravadas nessas pérolas transparentes em seu próprio Rosto - é por isso que muitos preferem a cegueira ao cárcere da Insanidade. Não se passara assim com o Louco que agora se via aflito com a única Adivinha que não poderia jamais responder.

O Estranho, regozijando-se com a aflição do pobre Tolo, respondeu então à sua própria Adivinha: "A Serpente que Vive e Morre nos olhos dos homens é o Desejo, um Sentimento que todos sentem, mas que os tolos buscam ignorar, esconder em Muralhas impenetráveis dentro do seu Ser. Pobre Tolo, agora és minha propriedade e hei-de levar-te para o Inferno onde serás acorrentado com o teu trágico riso morto na Rocha mais pesada de todas e sofrerás todas as Torturas imaginadas e sonhadas pelo Homem (pois o Demónio é incapaz de sonhar algo por si próprio)."

Assim, partiram os dois para o Inferno, com o Demónio às Gargalhadas e um Bobo, pela primeira vez!, pesado e silencioso.


Um ano se passara e durante esse ano o Sábio da Corte tomou conta do Reino e fez dele o que quis, um lugar onde todos gritavam, matavam e destruíam com falsa alegria. As Multidões continuavam a acorrer como antes aos festivais do Palácio, no qual já não morava o Bobo, e gargalhavam, pulavam e riam... mas já não sorriam. O Sábio exercia todo o governo e a ele obedeciam ministros e soldados, mas ainda não conseguira o seu prémio mais desejado - o coração ardente da Rainha. A Rainha, ao contrário dos outros, não esquecera o seu Bobo e tinha-se fechado longe de todos os olhares, alheia a todos os absurdos ao seu redor, nos aposentos reais, espreitando através da janela por onde esperava ver a qualquer momento o regresso do Tolo. O SOL desaparecera do Céu e um negro sólido indescortinável tinha coberto de vez a Terra.


No Inferno o Tolo tinha sido humilhado, acorrentado e torturado vez após vez sempre de formas diferentes e mais dolorosas, mas não perdera o seu principal trunfo: a Perspicácia dos doidos. Assim, quando o Estranho visitou o Louco pela primeira vez desde que ali tinha chegado, o Tolo possuía um estratagema e seria ele a propor as regras. O Tolo falou ao Demónio: "Já estou neste lugar há uma Eternidade e embora sejais Senhor de meu corpo ainda não matastes o meu alento e não possuís a minha alma. Eu proponho-vos um novo negócio no Inferno: eu direi uma Adivinha e se vós não souberdes a solução eu partirei livre; caso soluciones a adivinha, o meu alento e Alma serão vossos, como meu Corpo." O Demónio sorriu de Maldade, pois Todos os Prisioneiros do Inferno lhe apresentavam um esquema semelhante ao fim de um tempo e todos haviam perdido a alma nele. Sobretudo, o Demónio - após possuir o Alento e Alma do Louco - poderia assumir plenamente a sua forma e usá-la para conquistar a desejada Rainha. O Demónio acedeu com a cabeça à proposta do Tolo e ouviu: "Há muito tempo atrás no Palácio dos Ventos Uivantes uma das convidadas de honra, a Rainha do Gelo, entrou com um amante insuspeito na Corte e cujo nome jamais era Pronunciado pelas más-línguas. Como se chamava o amante desconhecido da Rainha do Gelo?" O Demónio envaidecido respondeu prontamente - "Era EU, que me chamo Senhor da Maldade e que nesse Tempo possuía completamente a Rainha do Gelo, apaixonada pela frieza da minha Malícia. EU, cuja presença se manifesta em segredo onde as pessoas não a esperam e não estou por vezes onde me acusam, acompanhava todos os passos da Rainha do GELO e atraía à distância todos os seus olhares sem que alguém desse por Isso. Ninguém se atreve a pronunciar o meu NOME na presença de Reis e Príncipes." O Louco voltou então a rir-se!, pela primeira vez desde que tinha saído do palácio da sua Amada, o Tolo sorriu e não conteve as gargalhadas reconhecendo que a Vaidade do Demónio o fizera cair na sua trapaça. O Tolo declarou então perante o Inferno Inteiro estupefacto: "O Amante secreto da Rainha do Gelo era o SILÊNCIO, cujo abraço pode ser ambiguamente terno e gelado e cuja presença permanente junto da sua companheira taciturna não foi interrompida por nenhuma palavra." O Louco Pulou então, livre dos seus Grilhões e sem se voltar Saiu do Inferno com saltinhos de incontida Alegria. O Tolo não soubera, todavia, do perigo que incorrera naquele Local Obscuro: na verdade, o Demónio não tem poder algum sobre os seus Súbditos e Prisioneiros; Todos são livres de partirem quando bem o entenderem, mas permanecem acorrentados somente pelo remorso e perda de amor-próprio. O Louco podia nunca ter vindo ao Inferno e apenas a sua crença nas Mentiras o fizeram ali ficar.


O Tolo partiu depressa para junto de sua amada (que não esquecera durante o cárcere) e o Riso e Alegria voltaram com ele ao Reino. A Rainha avistando-o da sua janela abandonou os seus aposentos sombrios e o Sol voltou a brilhar nos Céus. O governo do Mundo voltou às mãos do Monarca-Dia e uma festa foi dada para comemorar o regresso do LOUCO.

Entretanto, a Vida prosseguia o seu curso misterioso e o Estranho-Que-Conhece-Todos-Nós espera pacientemente que os homens lhe entreguem os seus destinos mais Uma Vez.

A História de Tarot, como todas as histórias!, jamais Termina.

acerca do conto...
Título: História de Tarot
Data: 23 Dez. 2000
Autor: Carlos Madeira
e-mail: