Agachada na escuridão, dissimulada por sombras indistintas, a criatura espera sua hora. Pacientemente, espera o momento em que poderá finalmente saciar o seu apetite voraz. Não lhe interessa saber quem será a sua próxima vítima. Talvez um homem de meia idade bêbado que chega tarde a casa? Ou uma velhinha com insónias que passeia o cão? Será um casal de adolescentes que parou um instante para um beijo sôfrego? A noite está quente, pesada. O calor insustentável do verão esmaga a cidade não lhe deixando outra alternativa senão o sono profundo. O cheiro do alcatrão quente mistura-se com o som dos grilos e o zumbido de milhares de pequenos insectos. As janelas já se apagaram todas, uma após outra renderam-se à noite quente e envolvente. Horas antes todas elas estavam abertas e iluminadas, deitando para a rua o som da televisão, de músicas alegres e conversas animadas. Agora apenas subsiste a luz pálida e doentia de alguns candeeiros na rua. Para a criatura, qualquer uma dessas janelas, teria constituído a entrada para um verdadeiro banquete, um festim divinal, uma autêntica orgia de carne! Mas isso não é o seu género. Para quê expor-se ao perigo sem necessidade? Ela prefere a prudência e a discrição. Espera o momento propício para atacar. Nesse momento ela sairá das sombras abatendo-se sobre a sua vítima velozmente. Uma vez a sua fome saciada deixar-se-á novamente sorver pelas sombras protectoras que lhe oferece a noite. Mas saberá ela realmente tudo isto? Terá ela consciência dos seus actos? Ou agirá apenas por instinto? Obedecendo, talvez, a um apelo atávico mais antigo que a própria humanidade? Ao longe um carro atravessa a noite. Cães que ladram. Um motor que se afasta. E a noite volta-se a fechar. A criatura já não tem consciência do silêncio que a rodeia. Não tem consciência do silêncio, nem da sua futura vítima, nem sequer do tempo que já esperou. Agora, o seu pensamento está ocupado por uma única obsessão tenaz e dolorosa: A SUA FOME! Uma fome avassaladora que aumenta a cada minuto. Uma fome que está prestes a atingir o seu ponto culminante. O momento irreversível em que a criatura esquecerá toda a sua prudência para satisfazer o seu vício de uma forma frenética e sanguinária. Quando o momento crítico chegar, ela deixará o seu esconderijo seguro e procurará desenfreadamente uma vítima. Qualquer uma, nova ou velha, homem ou mulher, adulta ou criança, desde que lhe possa dar o seu bem mais precioso. Aquilo que a criatura sedenta tanto necessita: o seu SANGUE! O inestimável fluído vital. O saboroso líquido, quente, espesso e doce que para ela apenas significa... A VIDA! Uma vida nova, constantemente renovada, noite após noite. Vítima após vítima. Prazer sensual e indispensável para a sua subsistência. Sons de vozes nas escadas. Um casal. O momento da verdade. O instante tão desejado. Abre-se uma porta. Uma luz que se acende. Outra. Uma explosão de claridade. A luz atravessa o espaço parando milagrosamente a escassos centímetros do seu esconderijo. A criatura continua protegida pelas sombras cúmplices. Frases soltas e ensonadas. Já é tarde. Muito tarde. Bocejos. Alguns murmúrios indistintos. As luzes que se apagam. Chegou o momento crucial. A criatura desdobra os seus membros encolhidos e lança-se ao assalto das suas vítimas adormecidas. Aproxima-se, observa, hesita. Primeiro a mulher, abandonada e inocente. Está nua, meia coberta pelo lençol transparente. É bela, desejável. A criatura consegue sentir o cheiro do seu sangue, fluído e subtil. Antecipa com prazer o momento em que o vai saborear. Quando ela e a sua vítima formarem um só corpo. Unidos pelo prazer sensual dos seus sangues que se misturam. De súbito um outro cheiro sobrepõe-se. É o cheiro do homem, deitado a seu lado. Um cheiro forte, arrebatador. A criatura, embriagada pelos odores exalados, quase que o consegue saborear. Um sangue doce certamente. Espesso e quente, talvez com um ligeiro travo ácido. Já não hesita. A sua vítima está escolhida. Talvez ainda prove a outra mas isso será depois, se ainda tiver fome. Por agora está obcecada com aquele cheiro. Tem que beber aquele sangue delicioso. Mais nada importa neste momento senão o cheiro estonteante que lhe desperta apetites incontroláveis. Está agora a alguns centímetros do homem. Tão perto que lhe consegue ouvir o pulsar do sangue nas veias. O som calmo e ritmado do precioso líquido a circular no corpo. A espera foi torturante. Já não aguenta mais. Num segundo, abate-se brutalmente sobre a sua vítima indefesa. PÁS!! O som seco ecoou pelo quarto. - O que foi?!, pergunta a mulher acordada em sobressalto. - Nada querida, era uma melga. Podes dormir, já a matei.
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