O homem acorda em sobressalto. Os olhos muito abertos contemplam um terror invisível. A boca abre-se para um grito que não vem. Cara desfigurada. Cabelos colados à testa. Despenteado, encharcado em suor. O som acaba por surgir. O grito silencioso que se formou no fundo das tripas encontra por fim uma saída. Uma lamúria quase inaudível. Uma súplica que vai crescendo até se transformar num uivo descontrolado e desumano. Os seus companheiros de quarto acordam. Luzes que se acendem. Vozes sonolentas. Alguns gritos. Passos rápidos no corredor. Dois homens de bata branca que o agarram vigorosamente. Uma agulha espeta-se no braço. O corpo desfalece. O homem volta a adormecer.
- Então Senhor Matos? Teve um pesadelo ontem à noite? - Hã? Eu? Não me lembro... O rosto magro e duro do Dr. Hartmann suavizou-se com um sorriso apaziguador. - Vá lá, Sr. Matos, faça um esforço. - Já lhe disse que não me lembro! - Respondeu o homem de mau humor. Com os seus cabelos brancos cortados à escovinha, a sua barbicha bem aparada, uns olhos inquiridores escondidos atrás de óculos de aros grossos e a sua bata branca o Dr. Hartmann personificava a caricatura do cientista nos anos cinquenta. A boca pequena e fina transformou-se num sorriso ainda mais condescendente. - O senhor sabe que tem uma obrigação moral para com este grupo. Aqui, todos partilham as suas experiências, mesmo as mais íntimas. Só o senhor é que não respeita as regras do jogo. Olhe para os seus colegas. Nenhum deles sabe quem você é, porque está aqui, qual a sua história. Não acha que lhes deve isso? O homem olhou em volta. Sentados em semicírculo os outros pacientes olhavam-no com reprovação. Se era verdade que tinham sido bastante simpáticos ao principio, agora mostravam sinais evidentes de exasperação. - Eu não tenho obrigação nenhuma! Não devo nada a ninguém! - Explodiu ele, levantando-se prontamente. - Eu não pedi para estar aqui! - E saiu da sala num passo decidido. O Dr. Hartmann encolheu os ombros.
Gabriel Matos percorreu apressadamente o longo corredor branco e saiu a correr do edifício. Lá fora, hesitou um segundo e dirigiu-se para o parque num passo mais lentos. Parecia profundamente transtornado. Inspirou profundamente enquanto caminhava por entre os grandes cedros. Quem o visse pensaria certamente tratar-se de um louco. Mesmo no seu estado normal havia qualquer coisa de estranha que emanava dele. Não se podia dizer que fosse o cabelo que parecia crescer em tufos, ou os olhos grandes, ou até a textura muito lisa da pele. Mas o conjunto produzia uma sensação bizarra e indefinida. De qualquer maneira, fechado numa clínica psiquiátrica, não corria o risco de encontrar quem quer que fosse. Estava a salvo, protegido do mundo exterior. Começou a acalmar-se. Aproximou-se do lago. Sentou-se num banco de jardim observando os patos e os cisnes que deslizavam majestosamente pela água. Já não estava irritado. Sentia-se profundamente infeliz. Pensou nos outros pacientes com um certo pesar. Talvez o Dr. Hartmann tivesse razão. Ele devia-lhes a verdade. Mas a verdade era demasiado horrível para ser contada. Abanou a cabeça com convicção. Não, não podia falar. O que ele sabia não podia ser revelado.
De pé, atrás da janela do seu escritório o Dr. Hartmann observava o seu paciente. Um fino fio de fumo elevava-se preguiçosamente do seu cachimbo. Aquele mutismo intrigava-o. Todos os outros "doentes" estavam mais do que dispostos a contar as suas histórias de discos voadores e homenzinhos verdes de marte. Essa fantasia era a única coisa que tinham para suportar a realidade dolorosa e agarravam-se a ela com unhas e dentes. Alguns quase que a exibiam como um troféu, um emblema que os distinguia da multidão. Mas este Matos era um caso à parte. Recusava-se terminantemente a falar. Já tinha tido vários pacientes "refractários" mas este era exasperante. O Dr. Hartmann não tinha ilusões sobre a sua vocação. Aplicava em si a mesma lucidez fria e implacável que usava com os seus pacientes. Certamente que não era por "amor ao próximo" que se dedicava a esta profissão. O que o motivava realmente era a possibilidade de entrar dentro da cabeça das pessoas. Descobrir os seus segredos mais íntimos, sondar os cantos mais escuros do da sua mente. E nisso ele era, sem dúvida, muito bom! Era ajudado por uma intuição fora do comum. Tinha um dom especial para quebrar todas as barreiras do inconsciente. Sabia sempre instintivamente qual a pequena palavra ou frase inocente que tocavam aquele ponto sensível desencadeando uma catarata de emoções e lembranças escondidas. Se esta faculdade especial lhe conferia o poder de curar os outros, óptimo! Mas ele sabia perfeitamente que isso era secundário, apenas um corolário do seu dom. A sua motivação primeira era bem menos humanitária.
E neste momento, sentia-se frustrado com este homem taciturno.
Voltou a consultar os seus apontamentos: Gabriel Matos, filho de Maria Angela Coutada, pai desconhecido, a mãe morreu durante o parto, passou 3 anos num orfanato antes de ter sido adoptado. - Teria sido aqui? Talvez... Continuou a leitura: Infância normal. Adolescência sem problemas Maiores. Os pais adoptivos morreram num acidente. Vive da herança que lhe deixaram. - Seria isto o problema? Era uma possibilidade... Foi encontrado na madrugada do dia 23 no parque de Monsanto, nu, murmurando frases incoerentes sobre um grande disco voador.
O que teria realmente acontecido naquela noite?
Sim, porque era claro que ele não acreditava nessas histórias ridículas de discos voadores e seres extraterrestres. Era óbvio que as suas pacientes não tinham sido violadas por seres vindo do espaço. O pai ou o tio? Sim, isso já era mais plausível. Claro que para as pobres vítimas era completamente inaceitável. Daí a necessidade de transformar o violador num ser de outro mundo. Era mais fácil refugiarem-se na fantasia. No entanto ele fingia acreditar nessas histórias. Fazia-o por duas razões. Em primeiro lugar, isso ajudava os seus pacientes nas primeiras fases do tratamento. E em segundo era um assunto que estava na moda. Era um bom tópico de conversa e sobretudo interessava os meios de comunicação. Conferia-lhe uma notoriedade que não era de desprezar. Principalmente agora que o seu livro estava quase acabado, precisava de toda a publicidade que conseguisse arranjar. Voltou a olhar para Gabriel Matos. Continuava imóvel como uma estátua, observando sabe-se lá o quê. - Não perdes pela demora. - resmungou o Dr. entre dentes - E quando descobrir o teu segredo vou-lhe reservar um capítulo inteiro no meu livro. Vamos ficar os dois famosos.
Nove e meia da noite. As janelas do refeitório deitam uma luz fria para o parque. Lá dentro as poucas conversas são abafadas pelo barulho da loiça. Sentado nos degraus da entrada Gabriel observa a ponta avermelhada do cigarro. De súbito sente uma presença atrás de si. Levanta-se de um salto. - Não se assuste, sou só eu, diz o Dr. Hartmann, suavemente. Gabriel afasta-se bruscamente. O Dr. Hartmann segue-o. Caminham os dois, lado a lado, em silêncio. O Dr. Hartmann pára por instantes olhando para cima. - Que noite magnífica", exclama, observando as estrelas. Quem diria que atrás desta calma aparente, neste preciso momento, mesmo por cima das nossas cabeças, encontram-se centenas de seres extraterrestres a conspirar contra nós! A frase foi dita com jovialidade mas o sarcasmo não é menos contundente. Observa Gabriel pelo canto do olho. Continua com o mesmo ar impassível de quem não está ali. Decide voltar ao ataque. - Gabriel, Gabriel..., repete pensativamente. Foi esse o arcanjo que veio à terra com uma missão bem precisa não foi? Fala suavemente como se estivesse a falar consigo próprio. De repente estaca obrigando o seu companheiro a olha-lo de frente. - E você Gabriel? Qual é a sua missão, pergunta secamente. O homem empalidece, gagueja. - O... o... que é que quer dizer com isso? Incrível! Mais uma vez a sua intuição descobriu a brecha! Decide aproveitar-se da vantagem. - Sabe perfeitamente bem o que eu quero dizer! Gabriel está agora completamente alarmado. - Não, não sabe nada! Não pode saber! É preciso aproveitar a ocasião. Alargar a brecha. Inventar uma história, mentir se necessário. O Dr. segue os seus instintos cegamente. - Ora, ora Gabriel, pensa que só você é que fala com eles? Gabriel cai pesadamente num banco, a cabeça entre as mãos, soluçando. - Eu não quero! - uiva desesperadamente. O Dr. Hartmann senta-se ao seu lado passando-lhe a mão por cima dos ombros confortando-o. Em silêncio espera pelo resto. - Eles disseram-me que tinham violado a minha mãe. - Disseram-me que eu não era completamente humano. O choro é cada vez mais convulsivo. - Disseram-me que eu tinha que matar os inimigos deles. Aqueles que representavam uma ameaça para o seu grande projecto. Foi essa a missão que me deram. - Eu supliquei-lhes. Disse-lhes que não conseguia matar quem quer que fosse. - Mas eles não ligaram nenhuma. Responderam-me que não precisava de me preocupar com isso. Disseram-me que estava programado nos meus genes. Explicaram-me que quando chegasse a hora, o meu corpo saberia exactamente o que fazer. Que tudo se passaria sem eu dar por isso. Disseram que nesse momento eu teria uma força superior à de dez homens. - Mas eu não quero! - voltou a gritar. - Eu não sou um assassino! - Eu..não..sou..um..assassino. Está-me a ouvir? - .....
O Dr. Hartmann já não o ouve.
Continua sentado, o corpo inerte, a cabeça dobrada para trás num ângulo impossível.
Os olhos muito abertos fitam sem ver as estrelas longínquas.
|