Retrocedersimetria: ficção
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a nave
por Jorge Candeias <[email protected]>

A nave voava rapidamente no meio das estrelas. Os seus tripulantes dormiam congelados, esperando sem tempo que a nave chegasse ao seu destino. O computador vivia e observava.

Aquela agulha oca de metal e plástico, frágil invólucro que protegia e mantinha a vida de vinte homens, como caracóis hibernando dentro de uma concha comum enquanto lá fora o Inverno se estendia em camadas negras e geladas, devorava quilómetros na direcção de uma certa estrela, gigantesco centro de reacções de todos os tipos que aparecia aos olhos humanos com um tom de azul dolorosamente claro, quase branco. A nave tinha partido da Terra havia muito tempo. O sono frio e a distorção do espaço tinham mantido os homens adormecidos mas vivos durante milhares de anos. A nave funcionava perfeitamente. O computador controlava a nave.

E a nave mudou. A nave encolheu, tornou-se mais compacta, e surgiu a vaga sugestão de um rosto, enquanto corria por entre as estrelas. Apareceram dois olhos, uma boca e um minúsculo nariz, estranhamente deformado. E por dentro também mudou. Transformou-se lentamente num imenso estômago e os homens tornaram-se enzimas e as enzimas multiplicaram-se e desenvolveram-se. A nave abriu os olhos, pestanejou e olhou em volta. E, com uma leve alteração no fluxo dos motores, a nave mudou de direcção.

A nave absorveu o ar do vazio e sorriu. E começou a crescer. As enzimas que foram homens falaram umas com as outras e exigiram trabalho. Então a nave sentiu fome, abriu a boca e comeu pela primeira vez um pequeno meteoro. E a nave saboreou e gostou. E as enzimas saborearam e gostaram e pediram mais. Então a nave cresceu e comeu. Comeu e cresceu. A fina agulha que picava as estrelas e abria caminho pelo espaço com os seus potentes motores que a nave fora outrora tinha-se transformado numa cabeça e os motores saíam da nuca e o estômago era o crâneo e o computador vivia na testa. E a nave crescia e comia. Comia e crescia. Comia estrelas e planetas, devorava sistemas inteiros. A cabeça humana crescia. comeu um braço da galáxia, depois outro e outro e depois o núcleo e por fim a galáxia inteira. Depois mudou-se para outra galáxia. E comeu-a. E continuou a comer quasars e galáxias, gás interestelar e buracos negros, e foi comendo tudo até que já nada restava. Então a antiga nave, agora cabeça, olhou em volta e não viu nada. Então a nave abriu a boca e engoliu a saliva que ela própria fabricara. Então as enzimas fecharam a boca e a nave deu toda a potência aos seus motores e ultrapassou a velocidade da luz. E não foi destruída. Milhares de anos mais tarde chocou com a parede do universo. E não foi destruída. Mas a nave ficou tonta e a cabeça humana com as suas enzimas, outrora seres humanos, começou a cair. Caíu e caíu, rodopiando na espiral da morte. E rodopiava, rodopiava. E gritava. A nave gritava e o universo vazio ressoava e tremia com os seus gritos. E a nave caía. Caía no negro fundo do universo que já não era furado pelo brilho das estrelas. Então a nave teve medo e pôs os motores a trabalhar para parar a queda. Mas a queda acelerou. E quanto mais força faziam os motores da nave, mais depressa a cabeça humana caía. Então a nave parou os motores, e a cabeça humana parou de pensar, e as enzimas, outrora seres humanos, deixaram de ter fome. E a nave parou de cair e de rodopiar. A nave parou e ficou parada no meio do grande negrume do universo. Então a nave sentiu-se só. E dos olhos da cabeça humana brotaram lágrimas e a sua boca abriu-se para soluçar. Então as enzimas que tinham sido homens, voltaram a ser homens e choraram. E descobriram coisas que havia muito estavam esquecidas. E viveram de novo.

Então a cabeça humana olhou para si própria e vomitou. Nasceram estrelas e planetas e quasars e galáxias e buracos negros e gás interestelar. E nos planetas surgiu a vida e da vida nasceu a razão. Então cada homem escolheu um planeta para seu lar e todos viveram muito tempo.

O universo tornou-se humano. A nave voltou à sua forma de fina agulha perfuradora de estrelas e reproduziu-se. E surgiram milhões de naves que se adaptaram às novas e por vezes estranhas formas de vida. Mas desta vez era o Homem que tudo controlava. Salvo por si próprio da sua loucura, procurava ensinar às outras espécies as lições que tinha aprendido tão amargamente à sua custa. E o universo escutou e aprendeu, recriou-se e floresceu, e não voltou a aparecer uma cabeça humana que fora em tempos nave. E não voltaram a aparecer enzimas que outrora tinham sido homens.

 

acerca do conto...
Título: A Nave
Data: 06/08/00
Autor: Jorge Candeias
e-mail: [email protected]
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