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a queda
por Jorge Candeias <[email protected]>

O dia está calmo. Uma leve aragem transporta um cheiro quente a rosas vindo de algum escondido jardim. O céu brilha, azul, com algumas nuvens brancas de algodão aqui e ali. Borboletas esvoaçam de flor em flor, batendo as suas asas de seda ao ritmo suave da Natureza. O prado verde estende-se a perder de vista, interrompido por breves pinceladas de cores diferentes. Aqui, o castanho rugoso do tronco de uma árvore; Mais adiante, um tapete de multicoloridas flores; Depois, o tom azulado de um bosque distante; Ao fundo, o brilho branco do cimo de uma montanha. Os gritos dos pássaros quebram o profundo silêncio da Natureza. O alegre chilrear de um tordo, o matraquear de um picapau, construindo o seu ninho na dura madeira de uma árvore, o piar lamuriento e triste de uma coruja esfomeada. Tudo está certo, normal, mas no entanto há algo que destoa: um odor imperceptivelmente desagradável trazido pelo vento, uma nota dissonante na canção da Natureza, uma tensão cortante no ar como se estivesse eminente uma trovoada. No entanto, o céu tem apenas algumas nuvens primaveris, estranhamente recortadas.

 

No meu relógio, as horas passaram. As nuvens de formas bizarras transformaram-se num automóvel de algodão, numa girafa de alva e esfarrapada cartolina e num rosto com um estranho esgar e uma expressão feroz no olhar. A cauda de um enorme e invisível cavalo alado serve de fundo a esta surrealista tela de algodão. Subitamente, ao passear o olhar pelo acidentado horizonte, reparei num objecto negro que se deslocava rapidamente pelo céu. Era obviamente uma máquina e concluí que fosse um avião. Suspirei irritado na perspectiva de ver quebrado o suave encanto daquela paisagem intocada pelo Homem. Porém, à medida que o objecto se aproximava, fui-me dando conta de que aquilo não era um mero avião que passa e não regressa, compreendi que aquilo era outra coisa, e essa coisa caía, caía deixando atrás de si uma nuvem de estrelas que se apagavam imediatamente. Parece um cometa com a sua cauda, pensei eu, mas os cometas não caem e aquilo caía. E quando a queda acabou houve um imenso clarão de fogo. Um novo sol ergueu-se do bosque e foi tomar o lugar do verdadeiro, no céu, deixando atrás de si uma imensa nuvem de fumo. Uma nuvem que subiu e depois se expandiu, formando a umbela de um cogumelo gigantesco que tapou os dois sóis, o novo e o velho, transformando o dia em noite sem luar. Depois veio o Ruído. Um estrondo colossal, como se de repente a montanha se tivesse quebrado em enormes penedos e estes se tivessem precipitado depois mil vezes no vale cáem baixo. Os animais gritaram quando aquele inferno sonoro lhes dilacerou os tímpanos, somando com os seus gritos mais uma nota à angústia da Natureza. Depois chegaram o Vento e o Calor. O Vento veio primeiro uivando como um monstro furioso, soprando e destruindo tudo à sua passagem. Derrubou àrvores que ao cairem esmagaram centenas de caracóis que, assustados, se tentavam fechar nas suas frágeis conchas. As árvores que resistiram e ficaram em pé, viram-se despojadas de todas as suas folhas que voaram pelos ares, subitamente tomadas de uma vida insuspeitada. As folhas juntaram-se, separaram-se e juntaram-se de novo, formando um tapete voador que me agarrou e me levou para cima, para junto do esgar e da girafa e da cauda, agora desfeita do cavalo branco. E dali, de dentro do meu novo automóvel branco, assisti à chegada do Calor que torrou e matou tudo o que ainda estava vivo. E a umbela do cogumelo continuou a crescer e ocupou todo o céu por cima do meu carro, e tornou-se ainda mais negra, e mil olhos de pessoas, plantas e animais me olharam daquela nuvem, e depois, por detrás dos olhos magoados e feridos, surgiu um enorme sorriso, o sorriso da Morte triunfante que, podia jurá-lo, se ria de ver-me dentro do meu automóvel de algodão, assustado como estava. Depois, como por magia, a nuvem desapareceu, deixando cair outra chuva de cinzas sólidas, que cobriu toda a Terra como uma mortalha negra. Então as folhas tiraram-me do meu automóvel e depositaram-me depois suavemente no solo, morrendo de seguida. Fiquei ali, aparvalhado, olhando sem acreditar para a paisagem que me rodeava, enterrado nas cinzas negras até aos joelhos, enquanto as folhas se afastavam, levadas pelo vento.

 

O dia está calmo. Uma leve aragem transporta um cheiro quente das cinzas amargas que estão por toda a parte. O céu brilha, azul, com algumas nuvens esfarrapadas e negras aqui e ali. Cinzas esvoaçam ao vento como borboletas de asas de veludo negro que procuram em vão a alegria de uma flor. Um manto cinzento estende-se a perder de vista, interrompido por breves pinceladas de cores diferentes. Aqui, uma planta de um verde desmaiado, milagrosamente salva do ataque final do Calor, dobra-se ao vento tentando resistir às cinzas que a sufocam; Mais adiante, uma auréola fosforescente e radioactiva marca o local onde caíu um grande veado de chifres ramificados; Depois, o negro escuro e fantasmagórico das árvores caídas de um bosque distante; Ao fundo, o brilho indiferentemente branco de uma montanha. Nada perturba o silêncio da Natureza morta. Nem o chilrear de um tordo, nem o matraquear de um picapau, escavando o seu ninho no tronco de uma velha árvore, nem o piar lamuriento e triste de uma coruja esfomeada. O dia está agora completamente calmo. Uma calma total, sem som nem movimento. Uma calma mortal.

 

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Título: A Queda
Data: 06/08/00
Autor: Jorge Candeias
e-mail: [email protected]
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