Os olhos de Alice Eram claros. De um azul que se fingia verde, dependendo da luz. Amendoados, mas não muito. Belos. Suavemente belos os olhos de Alice. E encerravam estranho enigma aqueles olhos. Às vezes ela se perguntava como o fenómeno havia começado. Lembrava que desde muito cedo, aos sete, oito anos, por aí, ou menos até, porque talvez antes, ungida de inocência, não soubesse avaliar o fantástico poder que trazia nos olhos. Vou contar. A Alice era dado saber quais as pessoas marcadas para morrer. Simplesmente porque, ao primeiro olhar, os que caminhavam em direção à morte tornavam-se invisíveis aos seus olhos. A velhinha da esquina, solitária em seu chá vesperal na varanda envidraçada, um dia sumiu diante daqueles olhos claros e levemente amendoados. Passaram-se apenas três dias e a notícia chegou à casa de Alice, na época com nove anos. Foi a certeza que não queria ter: haveria de por toda a vida saber quem estava prestes a fechar os olhos. Alice agora vivia a véspera de completar 40 anos. Funcionária pública que estudara com bastante sacrifício, conseguira passar no concurso para a Previdência Social. Salário bom, comparado com a média brasileira, sempre aquém do mínimo. Um apartamento de dois quartos. Bem situado e mobiliado mais com bom gosto do que com ostentação (aliás, tinha hábitos bem simples). Um carro usado, mas em ótimo estado. Poucas idas ao mecânico. Viagens nas férias com o novo namorado, pois não podia ficar o ano inteiro no mesmo lugar, nem com o mesmo companheiro. Não suportava. Ainda assim, vida normal a de Alice, para quem até seu estranho dom acabara se tornando comum, tantas vezes sucedera. Ao longo dos anos, previra a morte de um a um de seus familiares mais velhos: primeiro a avó Judite, sua paixão neste mundo; depois, a alguma distância uns dos outros, o avô, o pai, a tia solteira, a mãe. Antes desta, o irmão, mais velho dois anos, que certa noite enfiou a motocicleta debaixo de uma carreta. Morte instantánea. Há poucos dias, entrara na repartição e a imagem do chefe, cara de poucos amigos como sempre, desfizera-se logo em seguida. Um enfarto fulminante o levaria no fim daquela mesma tarde, enquanto discutia com um subordinado. Assim a vida de Alice. Uma sucessão de acontecimentos funestos, como a de todos, mas sem a dor e a surpresa do Era inesperado. Queria ao menos poder não antecipar o choro por seus mortos, porque durante os velórios as lágrimas já haviam secado por completo. Mas que fazer? Eram seus olhos. Naquele sábado de abril Alice acordou especialmente feliz. Escancarou a janela do quarto e respirou fundo o ar da manhã. Passou a mão na cabeça para abaixar os cabelos e se lembrou da hora marcada no cabeleireiro. Um banho rápido, mas delicioso. Perfume nos pulsos e sob as orelhas. Com um sorriso pegou sobre a poltrona o pente de madeira que fora da mãe. Então mirou o espelho. E se desintegrou na luz dos seus olhos claros.
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