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__ _________ ____________ ____ _| |_ ______ ______ / __ \ \ / / __ \ `_ \_ _]/ __ \/ _____] | ____/\ \/ /| ____/ | | | | |_( (__) )_____ \ \______] \____/ \______]__| |__| \____]\______/[______/ _____________________________________________________ |_____________________________________________________| E V E N T O S Boletim informativo da SIMETRIA FC&F - Associação Portuguesa de Ficção Científica e Fantástico - --------------------------------------------------------------- Nº 2.04 edição do milénio 18 Mar. 2000 --------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- Coordenação: Luís Filipe Silva --------------------------------------------------------------- CONTEÚDO: EDITORIAL (comentários sobre a nova orientação do boletim) NOVIDADES DA SEMANA (notícias do mundo da FC e não só) CULTURA (histórias do mundo a que chamamos realidade) SITE DA SEMANA (recomendações virtuais) EVENTOS & E-VENTOS (lançamentos de livros e revistas; novidades) FICÇÕES E CONFISSÕES: O TESTE, por João Barreiros (um professor tem de lidar com os problemas de um país descontrolado... muito, muito parecido com o nosso...) --------------------------------------------------------------->>> Subscrições <<< enviar mail para [email protected] --------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------- NOTA: A internet é o meio de educação e informação previlegiado do novo milénio. Neste sentido, *EVENTOS* encoraja a disseminação do conhecimento, autorizando a reprodução e envio do boletim. Apenas pede que seja difundido na íntegra e com indicação completa da sua origem. Obrigado. --------------------------------------------------------------- --oOo-- --------------------------------------------------------------- EDITORIAL --------------------------------------------------------------- *EVENTOS começa a formar a sua nova aparência. Após muitas consultas a e-zines que proliferam pela Internet fora (método vulgamente conhecido como _benchmarking_) e perante as respostas entusiasticas perante o número anterior (obrigado, Ricardo!), chegámos à conclusão que o principal problema residia no facto de apresentarmos, por um lado, muitos artigos longos e pesados, e poucas novidades actualizadas, e por outro, um conteúdo sempre variável. Sem mencionar a sua data errática de publicação... Para responder às solicitações, *EVENTOS* começará a seguir um esquema mais fixo. Assim, as notícias da semana serão uma coluna permanente (bem, «coluna» num texto de e-mail é mais em sentido figurado...), bem como uma agenda das Eventos (no mundo real) e dos E-ventos (no mundo virtual) que se avizinham. Dessa forma pretendemos uma comunicação mais prática e actualizada com todos vocês, leitores. Os artigos de opinião e as ficções terão o seu lugar de honra. Neste número apresentamos uma das novas ficções que a Simetria publicou na sua página Web, da autoria do nosso associado João Barreiros. Finalmente, a crítica de livros e notícia de lançamentos. Para os leitores que pretendem manter a sua leitura em dia. Críticas e sugestões não são apenas bem vindas, como sequiosamente desejadas. O email é: [email protected] *EVENTOS* é uma publicação gratuita da Simetria. Somos uma associação sem fins lucrativos, e como tal preferimos investir o nosso (reduzido) orçamento em iniciativas para os amantes de FC, ao invés de fazermos publicidade. Apelamos então a todos os leitores a divulgação deste boletim. Forwardem, attachem, printem, xeroxem, espalhem a mensagem: o futuro está à porta! NUM FUTURO PRÓXIMO: concursos de ficção, artigos de divulgação científica, e uma novidade muito especial... Bom fim de semana! (LFS) --oOo-- +--------------------------------------------------------PUB--+ | Encontra-se disponível o novo número de | | | | * P A R a D O X O * | | | | a única revista portuguesa de Ficção Científica. | | | | Artigos, novidades, e um conto de Garry Kilworth, o autor | | de «Deus Gémeos» e «Rochedo Nuvem», numa tradução exclusiva| | de João Barreiros. | | | | Editor: Daniel Tércio | | | | Encomendas: SIMETRIA FC & F https://simetria.org | | tlf. 21 482 45 22 / email: [email protected]| +-------------------------------------------------------------+ --------------------------------------------------------------- NOVIDADES DA SEMANA --------------------------------------------------------------- »»»»»»Spielberg ataca de novo O realizador que nos trouxe filmes tão emocionantes como _ET_, _Parque Jurássico_ e _Indiana Jones_, e secas monumentais como _O Império do Sol_ e _A Cor Púrpura_, tomou a seu cargo o projecto em que Stanley Kubrick se encontrava a desenvolver antes do seu falecimento: A.I. (_Artificial Intelligence_), segundo anúncio público no passado dia 14 de Março. Segundo palavras do realizador, Kubrick estava a desenvolver a ideia há mais de 18 anos; o projecto actual irá respeitar essa ideia na medida do possível, pois Spielberg pretende também acrescentar o seu ponto de vista pessoal (os fãs estremecem perante estas declarações...). O início das tarefas está agendado para 10 de Julho, com o lançamento previsto para o verão de 2001. _A.I._, baseado no conto «Super-Toys Last All Summer Long», passa-se num futuro em que as calotas polares derreteram, e os robos possuem inteligência artificial (e notem como Kubrik de novo pretendia utilizar a obra de um autor britânico de FC, embora houvesse bastante material sobre o tema escrito pelos autores americanos). O argumento levou anos a elaborar, e iria ser o próximo projecto de Kubrik. Spielberg esteve quase a aceitar realizar a adaptação do primeiro dos livros de Harry Potter, antes de se decidir por este projecto de Maior envergadura. O próximo poderá ser _Minority Report_, baseado num conto de Philip K. Dick (outra vez?!), sobre um polícia que viaja para trás no tempo para prender os criminosos antes que tenham oportunidade de cometer os crimes (esperem lá, então será isto legal? E as provas?). Tom Cruise está apalavrado para esta imitação do _Timecop_ (saudades da Sandra Bullock...) (Scifi.com) »»»»»»SCIFI.COM Publica Ficção SCIFI.COM, o site na Web do Canal de FC transmitido por cabo para todo o mundo menos para Portugal, planeia incentivar a publicação de histórias de FC, originais e clássicas. A dirigir a publicação estará Ellen Datlow, que até recentemente era a editora do _Event Horizon_, a melhor magazine virtual de Fc. Foi esta senhora que «descobriu» o William Gibson. A par do seu surgimento na net, as histórias serão anualmente seleccionadas e reunidas em volumes para publicação offline, no mundo real. SCIFI.COM pretende adaptar pelo menos um dos contos que publicar para filme ou série de TV. (Scifi.com) »»»»»»Star Wars ataca pela Estafadésima Vez! LucasArts comunicou que, em conjunto com Verant Interactive e Sony Online Entertainment, irá criar o primeiro jogo interactivo, RPG, online, baseado na série _Star Wars_. Com lançamento previsto para 2001, o jogo incluirá um conjunto de combates, missões especializadas e aventuras. (Scifi.com) »»»»»»_Laranja Mecânica_ regressa às salas inglesas O filme _Laranja Mecânica_, de Stanley Kubrick, volta às salas inglesas. A obra, baseada no romance de Anthony Burgess, estreou-se em Dezembro de 1971, mas, em 73, foi o próprio autor que proibiu a sua exibição na Grã-Bretanha cedendo às acusações de estar a fazer a apologia da violência gratuita. Agora, após a morte de Kubrick, _Laranja Mecânica_ vai estar em 300 salas inglesas, apenas para Maiores de 18 anos. (Diário de Notícias online) »»»»»»Desafio para jovens criativos Anúncios sobre a diminuição do consumo de álcool entre os jovens, sem se transmitir uma mensagem castradora: este é o tema proposto aos publicitários com idades até aos 30 anos interessados em participar no Prémio Jovens Criativos 2000, promovido pelo Diário de Notícias/Belarte e a agência TBWA/EPG. A dupla vencedora irá participar no The Young Creatives Competition iniciativa realizada paralelamente ao Festival de Cannes. O regulamento e o briefing serão publicados na segunda-feira no suplemento "Negócios" do DN. Estejam atentos! (Diário de Notícias online) »»»»»»CEM inaugura novo workshop de Ficção Científica No seguimento da elaboração de _A Idade da Razão_, o Centro de Estudos em Movimento inaugura no próximo mês um ciclo de workshops de pequena duração dedicados a vários temas relacionados com Ficção Científica. Em Abril o tema a abordar será _Ciberpunk e a Realidade Virtual_, e incluirá apresentação de textos, filmes, autores e conversas animadas sobre o assunto. Este workshop destina-se a todos os entusiastas e fãs de ficção científica, jogos de computador, e internet. Mais informações no próximo *EVENTOS* (notícia CEM) --oOo-- --------------------------------------------------------------- CULTURA --------------------------------------------------------------- »»»»»»Novo artigo de exportação Segundo WIRED online, o novo artigo de exportação dos EUA é o tiroteio nas escolas secundárias. Na quinta feira, um estudante alemão de 16 anos disparou sobre o professor e sobre si mesmo, com consequências fatais, após os resultados de exame a cannabis terem sido positivos, e poder o aluno ser expulso da escola situada na Bavaria do Sul. Este incidente não é novo, pois a Alemanha tem vindo a sofrer uma insurgência de violência escolar no seguimento do que aconteceu no liceu Columbine em Littleton, Colorado nos EUA. Ainda no passado mês, as autoridades alemãs conseguiram impedir que uma aluna de 16 anos conseguisse levar a cabo o assassinato dos colegas como celebração do aniversário do massacre de Columbine. (Wired.Com) »»»»»»Fim de Semana de Festas Encontra-se a decorrer na Irlanda o Festival de St. Patrick, o festival irlandês mais internacional daquela cultura. As celebrações, que se encontram a terminar, tendo começado na quinta feira com a Parada Nocturna da Xerox, vão ter hoje o seu apogeu com _Masquerade_, um espectáculo apresentado em primeira mão no Dome britânico. Site: http://www.paddyfest.ie Mas para quem quer ver festas a começar, *EVENTOS* chama a atenção para o Havai, e a grande festa anual da Migração das Baleias, de 18 a 26 de Março. Iniciativas incluem: visitar as baleias no início da sua migração anual, conferências sobre o mar e festividades diversas. Site: http://www.visitlahaina.com/ (fontes diversas) --oOo-- --------------------------------------------------------------- SITE DA SEMANA --------------------------------------------------------------- Recomenda-se vivamente a visita ao site da Revista _Infinity Plus_. Esta revista publica regularmente ficção e artigos sobre Ficção Científica, actuais e absolutamente modernos. Vivendo de generosas contribuições dos autores, que precindem dos direitos para apoiar a disseminação na Net do que de melhor se tem feito na ficção científica nos últimos anos, o editor, Keith Brooke, também ele autor de FC, conduz-nos numa visita guiada à actualidade do género e alguns dos melhores contos dos autores que estão actualmente na «berra». O endereço é: http://www.infinityplus.co.uk Passem lá e façam uma visita! --oOo-- --------------------------------------------------------------- EVENTOS & E-VENTOS --------------------------------------------------------------- »»»»»»Lançamentos da Semana Encontra-se disponível em Portugal o último número da revista ASIMOV'S SCIENCE FICTION ( http://www.asimovs.com ) O conteúdo deste número é o seguinte: * Novela com o título «Green Fire» em que Isaac Asimov e Heinlein salvam o universo, da autoria de Michael Swanwick, Andy Duncan, Eileen Gunn e Pat Murphy * Artigo de Arthur C Clarke sobre a Exploração do Futuro. * Artigo de Norman Spinrad sobre a morte eminente da FC. * E ainda: Brian Stableford, Robert Reed e Stephen Baxter. À venda nas principais livrarias, ou por encomenda à Simetria. Preço nas livrarias: cerca de 770$ +--------------------------------------------------------PUB--+ | Venha debater connosco ficção científica em português! | | | | Inscreva-se na __Lista de Discussão da Simetria__ | | - basta enviar um mail para: | | | | [email protected] | | | +-------------------------------------------------------------+ --oOo-- --------------------------------------------------------------- FICÇÕES E CONFISSÕES --------------------------------------------------------------- O TESTE João Barreiros José Esteves acorda com toda a sintomatologia psicosomática característica deste tipo de dias. Vómitos. Astenia. Suores frios. O despertador semi- -inteligente pressentindo o ataque de ansiedade, fornece-lhe, para o distrair, um pequeno resumo das notícias nacionais que ocorreram entre a noite e a madrugada. Junto às costas Algarvias, a patrulha marítima acabou de torpedear mais um cargueiro cheio de refugiados políticos vindos das costas Africanas. Não foram tomados em consideração quaisquer pedidos de clemência. Nem mesmo a oferta ao Instituto Câmara Pestana de duas mil crianças nascidas durante a viagem para experiências em toxicologia e viroses mutagénicas. Cargueiro ao fundo e ponto final. Entretanto, no meio dos arbustos da avenida da Liberdade, lá pelas três da madrugada, um grupo dos sem-casa assaltou uma carrinha de turistas noctívagos nipónicos e começou a devorá-los, meio crus, aproveitado a água enquinada dos lagos para fazer uma sopa de algas. Quando capturados por uma das raras milícias urbanas ainda operacionais, o grupo gerontológico declarou a quem o quis ouvir: "São chinas. Comem sushi. Um nojo. A carne sabia a peixe..." José Esteves contempla-se ao espelho da casa de banho, deixa pender a língua onde despontam algumas áftas psico-somáticas, engole dois comprimidos anti-histamínicos, coça as úlceras do peito, abre a torneira onde escorre um fiozinho de água salôbra, e passa o depilatório sobre o rosto, antes de barrar todas as superfícies descobertas com um creme protector UV. Vezes sem conta vem-lhe à cabeça o formulário do teste que andou a preparar desde ontem. Serão as questões propostas suficientemente adequadas? Conciliáveis com a taxa de insucesso? Não faz ideia e isso assusta-o. Melhor teria sido informar os alunos do teor das perguntas, passar-lhes à sucapa a grelha do teste como costumam fazer alguns dos seus colegas, e proteger-se assim, protegendo ao mesmo tempo a taxa do insucesso escolar. Como não o fez, corre agora o risco, durante o percurso até à Escola, de sofrer qualquer tentativa explícita de assassinato. Como já aconteceu ao pobre do Silva, à Leonor, ao Tavares... Solícita, a telefonia informa-o que a falha tectónica que divide ao meio as caves do Centro Comercial das Amoreiras atingiu o diâmetro de cinco metros. Devido às enchentes, toda a Zona da Ex-Expo alagou de vez. Que não foi ainda reparado o tabuleiro inferior da Ponte Ancien Régime (novo nome) onde há cinco meses atrás um comboio inteiro desabou sobre um dos submarinos nucleares da Neues NATO. Felizmente, a contaminação do Tejo apresenta baixos níveis de radioactividade, asseguram as autoridades. Nada de preocupante. Nada que faça os mexilhões brilhar à noite. O pior vai ser pagar o submarino como novo. E porque alguém vai ter de dar o corpinho ao manifesto, são esperados novos cortes nos subsídios dos funcionários públicos. Indignado, José Esteves engasga-se com o desinfectante oral de largo espectro. Mais cortes? Logo no dia de hoje? Seja como for, é inútil protestar. Vendidos ao patronato, os sindicatos dos professores calam a boca e cruzam os braços tal qual Pirrão. O seu sacerdócio pertence pertence às profissões de alto risco, de tal modo que é obrigado a viver durante todo o ano lectivo longe da família, num apartamento esconso, que o Estado insiste em não financiar. Receio das represálias estudantis. O que significa mais despesas, um quarto alugado, um código secreto de telefone, armamento defensivo e ofensivo, passes, seguros de vida acrescentados, e outros tantos pequenos horrores cumulativos. Terminadas as abluções, segue-se a deglutição forçada da papa de farelos carregadinha de psicotrópicos e ansiolíticos, e todo o ritual quotidiano do vestir. Em primeiro lugar, espalma sobre a jugular os dermo-implantes que avisarão as seguradoras caso haja falha sistémica fora do local de trabalho. Se isso acontecer, ninguém paga coisa nenhuma. Depois veste o escudo de kevlar munido de placas de cerâmica, capaz de resistir ao impacto do fogo de uma semi-automática disparada à distância de quinhentos metros. José Esteves pergunta a si mesmo porque é que se há-de ralar e sofrer todos os desconfortos de uma crise de hipertermia. Já ninguém utiliza automáticas em casos como estes. Nos cantos esconsos da sala dos professores, há que se refira a mísseis comprados aos Bósnios por tuta e meia. Mísseis com um alcance reduzido de 150 metros, mas mesmo assim eficazes em situações de eliminação de profes com o máximo do prejuízo. José Esteves enfia os protectores cervicais, oculta as virilhas com as conchas anti granadas ofensivas, cobre a cabeça com o capacete, os olhos com os óculos espelhados, as orelhas com os sono-protectores. E por fim, terminado o vestir, segue-se toda a gama de armas pedagógicas. Um tazer (legal e aprovado pelo Instituto de Correção e Disciplina Juvenil). Um neuro-bastão (pouco recomendado, mas as autoridades costumam fechar os olhos). Um lança dardos de neurotoxinas com uma capacidade disfuncional para trinta horas de convulsões (ilegal e anti-pedagógico, visto que inibe a capacidade de aprendizagem dos discentes). No estojo do peito, junto à bolsinha das cadernetas/ficheiros, uma caneta de tinta indelével e de aparo de titânio. Acorrentada ao pulso esquerdo, a pasta onde guarda as folhas de teste, protegida com um fecho codificado. Finalmente está preparado para saír do apartamento. Com todo o cuidado destrava a porta, espreita para o corredor onde se ouvem à distância os gritos habituais de uma família a ser espancada pelos filhos. Um holograma carcomido do Papa, colado à janela do vão das escadas, estende os braços ao mundo num sorriso serôdio. Um aglomerado de preservativos dissolvidos em ácido, fumega ainda junto aos pés virtuais do defensor das proles múltiplas. OK, ninguém à vista, vamos em frente. No hall de entrada, protegido por uma comporta dupla, José Esteves dá de frente com duas fileiras dos sem-casa que ainda estão a dormir, meio comatosos, no buraco entre as duas chapas metálicas. Não vão eles acordar na hora errada e travar as calhas de rolamento com um braço ou uma perna, o prof passa-lhes por cima em passinhos de corrida, triturando aqui uns quantos dedos, ali um cotovelo ou um crânio seboso, esforçando-se por não respirar os relentos a caca, vómito, sarro e outros fluídos corporais que se evolam da massa adormecida. "Cabrão de burguês!", diz-lho um dos sem-casa. "A canalha fascista sempre calcou a classe operária, mas há-de chegar o dia em que..." "Experimentem dar aulas para ver se gostam, malandros...", resmunga José Esteves numa raiva pedagógica, passando à rua, engatilhando o espigão eléctrico não vá a Brigada da S.I.D.A. aproximar-se dele, de seringa em riste, mesmo a estas horas da madrugada. Nem pensar em servir-se do Metro até à Estação do Rossio. Hà meses que se encontra em fase de desparasitação. As baratas são tantas, que chegaram a cobrir e a devorar alguns utentes mais incautos em apenas poucos minutos. Baratas enormes, africanas, que acompanharam os parcos bens dos derradeiros refugiados aceites pelo governo em território nacional. Descer a Avenida da Liberdade a pé também oferece os seus riscos. É ainda noite e a floresta densa do jardim central enche-se de olhinhos e esgares maldosos. José Esteves acende a luz de presença do bastão eléctrico para vêr se intimida quem o queira atacar. O logotipo da Escola cintila-lhe no peito. Toda a gente sabe que os profes estão sujeitos a um número incomputável de doenças infecto-contagiosas, além de possuirem cartões com um crédito reduzidíssimo. O pior são os sem-casa iliteratos. Os afásicos conceptuais, que pululam em Lisboa cada vez em Maior número. Para esses, tanto se lhes dá como se lhes deu que José Esteves seja profe. O que importa é que se trata de proteína para a panela. Em abono da verdade, talvez fosse melhor ser atacado por um grupo de urbano-depressivos do que ter de enfrentar as massas estudantis em dia de Teste. Pelo menos sempre havia uma justificação de peso para poder faltar às aulas. Chegado à Estação do Rossio, José Esteves esgueira-se em passinhos de corrida, juntamente com mais outros quantos trabalhadores furtivos, através do labirinto de tendas étnicas que atravancam o acesso à Gare. Galinhas picotam aqui e ali entre as pilhas de lixo. Criancinhas correm até junto dos passageiros, colam-se-lhes às calças e saias, guinchando em alta voz: "Guia, senhor, guia...". José Esteves, no curto espaço de tempo em que vai subindo as escadas rolantes avariadas é abordado dez vezes pelos Xungas angariadores. Uns mostram-lhe à sucapa relógios Rolex. Outros tentam vender-lhe um chicote extensível. Uns quantos, com as irmãzinhas presas por correntes inquebráveis, tentam alugá-las ao minuto para uma rápida visitação pedo-sodomítica. Um estaminé feito à pressa no segundo patamar, colado ao buraco de uma loja incendiada, vende comprimidos, saquinhos, e frasquinhos acopulados a compressores dérmicos. Não se descortina um único segurança. Se polícia existe nas proximidades, anda lá pelo alto, em helicóptero, a ver as vistas através dos sensores infra-vermelhos dos mísseis ar-terra. José Esteves mostra o passe à entrada da Gare a um outro Xunga contratados pela CP precisamente para serviços como este. O Xunga sorri-lhe através da cabeleira oleosa. "Lugar sentado, chefe?" pergunta-lhe. "Obrigado", responde o professor sabendo que lhe é quase impossível procurar trocos nos bolsos protegidos por tantos fechos de segurança. "Não preciso de ajuda...". "Olha o choné..." ameaça-o o Xunga com o picador em riste. "Ao menos duzentos euros prós envelopes...". José Esteves sacode a cabeça, descobre a extremidade intimidante do bastão eléctrico, esgueira-se através das defesas de arame farpado, lança-se em passo de corrida na peugada da composição que ameaça partir. O comboio mergulha na escuridão bafienta do túnel sem se fazer esperar. Avança, rápido, não vá algum dos blocos centenários caír-lhe em cima. Fuligem penetra por todos os orifícios da carruagem, depositando-se sobre as formas acocoradas dos passageiros que se limitam a enfiar sobre os narizes as gazes dos filtros moleculares. José Esteves debate-se em busca de um lugar sentado. Não quer viajar junto das janelas, por causa daquilo que já se sabe. Não quer viajar nas coxias por causa do carreiro habitual de indigentes, que viajam sempre sem passe e sem bilhete, sabe-se lá como. Desta vez teve azar. Como não quis pagar aos Xungas, ficou de pé, torcido contra um dos bancos, sujeito à fricção permanente dos pobres que passam. Pobres que são às dezenas. Uns cantam, esganiçados, acompanhados por uma matilha de criancinhas presas a trelas, ao som de um micro-sintetizador electrónico. Outros arrastam-se, puxando pelos cabelos em gritos de desespero: "Tenho fome, tenho muiiiita foooome...". Outros, de peito nu, exibem chagas, úlceras, pústulas e um sem número de mutilações várias: "Quem dá qualquer coisinha pró implante. Quem dá...". Outras, balzaquianas gordas, flácidas e prenhas, agarram-se ao pescoço dos utentes, mostram-lhes os peitos, murmurando pedidos agressivos de leitinho não contaminado para o rebento. Mas a zona da Amadora aproxima-se e já ninguém quer saber de mais nada. A fila ininterrupta de pobrezinhos desapareceu como por milagre. As janelas escancaradas da locomotiva, apenas protegidas por uma rede de segurança, transformaram-se de súbito num lugar a evitar. Alguns passageiros mais abastados retiram da mala armas automáticas com mira laser, e um cano suficientemente esguio para conseguir passar entre as malhas da rede. As carcaças dos prédios condenados erguem-se de ambos os lados da via como falésias esburacadas de cimento. Tubagens, vindas dos terraços superiores, colam-se às paredes, curvam-se a dez metros do solo na direcção da linha, como bocas de canhões prestes a disparar. Os passageiros resmungam, encolhem a cabeça sobre os ombros, desdobram capacetes, enfiam óculos de soldador, e esperam, enquanto o comboio acelera, tentando fazer-se escasso. PAF; PAF; PAF, fazem as primeiras bolas de chumbo contra o plástico da locomotiva, aceleradas em queda livre desde o alto dos prédios e judiciosamente apontadas pelas tubagens ôcas ali postas precisamente para esse fim. Não vale a pena colocar vidros nas janelas, nem sequer anti-bala. É coisa que não dura mais do que três, quatro dias. E o problema não é só a energia cinética dispersa pelo impacto. A verdade é que existem outras esferas lançadas lá do alto, esferas de vidro cheias de ácido, sangue contaminado, fezes líquidas e outros tantos horrores quotidianos. Os utentes gritam sob a força do ataque. Os que se encontram armados disparam contra os prédios na vaga esperança que o sistema logicial das armas consiga atingir alguém. "Deviam ser todos mortos, os sacanas dos putos...", resmunga uma velhinha retirando do saco uma AK-47, felizmente sem carregador. "Um por um com uma bala nas cabecinhas. Isto não é brincadeira que se faça..." Encolhido a meio do corredor central, com os ouvidos a rimbobar sob a saraivada de projécteis caídos lá do alto, esforçando-se por não tocar em nenhum dos respingos vermelhos e amarelos que fervilham contra o estofo carcomido dos assentos, José Esteves morde os lábios enquanto dá contas à vida. Já está habituado. Isto não é nada que se compare com os perigos que corre um professor... Chegado ao Cacém, as coisas mudam de figura. Prudentemente o professor activa todos os circuitos de emergência do fato. De lança-dardos na mão direita, pasta dos testes protegida pela armadura de kevlar, José Esteves aproxima-se à sucapa do edifício da Escola. Aqui vamos nós, murmura entre dentes, lançando-se em passo de corrida na direcção do átrio, sob uma saraivada de pedras, esferas disparadas por fisgas, um ou outro projéctil balístico, e algumas investidas de discentes montados em motas aureladas de espigões. *** Após dez minutos de combate campal, entra a coxear na turma. Depois de duas quedas, receia ter fracturado a rótula. Sangue escorre devagarinho de uma lesão no cotovelo esquerdo. Um traço vermelho junto ao pulso revela todo o tipo de tentativas infrutíferas para lhe roubarem a pasta. Do outro lado da rede, a turma inteira ulula: "Não queremos teste", "Greve! Greve ao ponto!", "O prof está dois minutos atrasado", "Não há tempo. não há tempo..." "Nem se atrevam..." grita-lhes José Esteves com o bastão a faíscar na mão direita. "Lembrem-se que ainda não cumpri a minha cota de abate este ano. Lembrem-se que ainda posso dar cado de um ou dois de vocês com o máximo de prejuízo...E que não me importo nada de começar hoje mesmo..." A Maior parte da turma acalma-se. Os mais sensíveis ao stress, trituram a ponta das canetas com os dentes. Outros entretêm-se a esfarelar os tampos das carteiras ou a arrancar os tacos do chão. Devagarinho, com todo o cuidado para não sujar de sangue o questionário, o professor passa as resmas de papel através do orifício na rede, e vai sentar-se à secretária, completamente esgotado. Na outra ponta da sala, os alunos começam a ganir perante a dificuldade das perguntas. Um deles chega a devorar o enunciado. Três outros penduram-se na rede e proferem em voz baixa ameaças de morte e mutilação, não vão elas ser gravadas pelo sistema de segurança da Escola que de facto nunca chegou a funcionar. Inseguro, José Esteves passa os olhos pelas primeiras questões: Leia atentamente o seguinte texto: "Conhece-te a ti mesmo, assim diz a citação e assim eu próprio vos digo!", afirma SÓCRATES. 1. A quem pertence a citação: A: Sócrates. B: Mager. C: O nosso PM 2. Partindo do princípio que a filosofia implica reflexão Pergunta: Poderá haver filosofia espontânea? A: sim. B: Não 3. "O mundo nasceu da água" TALES A afirmação de Tales pretende significar que A: o mundo nasceu da água. B: da terra. C: do ar. D: de lado nenhum. No fundo da sala de aula, os gritos de fúria e frustração aumentam de intensidade. José Esteves começa a tremer. Afinal elaborou um teste demasiado difícil. A taxa de insucesso vai revelar-se gigantesca. O que implica visita de Inspector e tudo o resto. Quem sabe se mais um processo disciplinar e uma suspensão das actividades lectivas por provada crueldade mental. E como se isso não bastasse, uma espera feita pelos alunos, algures, fora dos terrenos da Escola. O suor escorre-lhe em bica pela fronte. Não pode fazer nada senão recolher a Maioria dos testes ainda em branco ao fim de duas horas, ou atravancados de graffiti insultuosos. E depois aguardar que a sala se esvazie e entre nova remessa. Pois este é apenas o primeiro teste do dia. Como ele, ainda faltam mais cinco. O discreto logotipo que orla o cabeçalho, lembra-lhe do horror que seria uma transferência vergonhosa para uma Instituição menos creditada do que esta: ESCOLA SANTO MAGER PARA ALUNOS EXCEPCIONAIS E SOBREDOTADOS... --------------------------------------------------------------- (c) 2000 Luis Filipe Silva/SIMETRIA FC&F --------------------------------------------------------------- *Enderecos e links mencionados nos artigos SIMETRIA: https://simetria.org e-mail: mailto:[email protected] Luis Filipe Silva: http://www.LuisFilipeSilva.com e-mail: mailto:[email protected] *EVENTOS - e-mail para assuntos relacionados com o boletim: mailto:[email protected] *Se desejar deixar de receber este boletim, devera enviar uma mensagem para mailto:[email protected] |