Retrocedersimetria: paradoxo
Fanzine de FC&F da SIMETRIA (2.ª série).
leituras temáticas

Por João Barreiros.


salgari 2000

Parafraseando Priestley, o passado é uma terra estranha. O presente não passa de um ponto móvel na crista instável de uma onda de probabilidades. E o futuro ainda está por acontecer. E quando falamos de futuro, referimo-nos não a um, mas a centenas de milhar de milhões deles em permanente estado de criação/desintegração. E se o futuro não pode ser determinado - pois quem consegue prever as escolhas que o Sr. Silva fará durante o dia de hoje ? - como podemos conceber que nesse futuro apenas entrevisto, "alguém" invente uma máquina do tempo e volte ao passado com os planos na mão, planos esses que descrevem minuciosamente "como" construir uma máquina do tempo?

E contudo o epifenómeno de Fátima avisa os crentes para o evento de uma 2.ª Guerra Mundial e para a conversão futura de uma Rússia recém socializada. A Virgem virtual refere-se a um mundo que só os autores de Fc ousaram descrever. E para dar mais credibilidade ao prognóstico, do céu chovem hologramas de rosas, a Virgem aparece nas primeiras versões vestida de fato macaco, as estrelas dançam no céu como num concerto laser de Jean Michel Jarre, ou melhor ainda, como se ali, apenas naquele local e em mais nenhum outro, o Cosmos ainda estivesse sujeito aos imperativos lógicos da física Aristotélica. O que nos leva a pensar que é possível prever/alterar/subverter o futuro, não pelo princípio simplista da fé, mas simplesmente porque já foi apontada uma alternativa. Partindo do princípio que apenas "um" futuro é possível, fazemos colapsar a onda probabilística numa catástrofe que nos negará todas as outras alternativas. Matamos o gato de Schrödinger a meio da sesta. Matamos todos esses futuros onde o socialismo soviético ainda reina triunfante, onde as naves patrulham o universo sob o signo da foice e do martelo, rumo ao encontro inevitável com todas as sociedades comunistas da Galáxia.

Paradoxos geram paradoxos ainda Maiores. Acreditar em Fátima é negar Galileu. É negar um universo heliocêntrico, para voltarmos à perfeição cristalina da dança das esferas, onde é possível, sim, o sol escorregar aos saltos pela cúpula do céu. É partir do princípio que o que está acima é superior ao que medra lá em baixo. A Virgem e Maomé ascendem na vertical rumo a um outro céu alternativo. No nosso universo não fariam mais do que entrar em órbita.

Vivemos num universo de múltiplas incertezas. As serpentes mordem a cauda e vão-se devorando até deixarem de existir. Pais Natais, debruçados sobre as chaminés do mundo inteiro, existem simultaneamente num só segundo, só para despejar brinquedos que os duendes fabricaram. Os políticos seguem alegremente a feliz regra do "duplipensar" tão ao gosto de Orwell, negam ou afirmam aquilo que ainda há pouco afirmavam ou negavam, e é como se ninguém se desse conta, como se houvesse uma oclusão conceptual, como se o passado pudesse ser reconstruído (e foi-o de facto muitas vezes ao longo da história) sem que os cidadãos se lembrassem que ainda há dias o presente era "outro".

Mas a verdade é que vivemos no futuro. Num dos muitos futuros possíveis que os nossos avós só a custo conseguiram entrever graças ao género nascente da Ficção Científica.

Emílio Salgari - vamos tomar como exemplo "As Maravilhas do Ano 2000" (1907) - partindo do princípio que o amanhã só seria compreensível aos olhos do novo século se fosse interpretado por um par de capitalistas vitorianos, resolveu congelar dois deles e dar-lhes uma vida efémera num desses futuros prováveis que nunca foram o nosso. Neste Admirável Mundo novo o jornal diário chega a todas as casas via radio. Nas paredes uma tela imensa transmite imagens vindas do mundo inteiro. Um comboiozinho diligente entra-nos pela casa através de um opérculo cravado na parede, trazendo nos seus vagões todos os alimentos e líquidos encomendados ainda há minutos ao Hotel da esquina. E por todo o lado, ó maravilha, a electricidade impera. Dínamos zunem sob as cataratas do Niagara e a corrente do Golfo. Aeronaves plataforma - daquelas com dezenas de hélices a rodopiar - flutuam sobre as cidades chocando parvamente uma com as outras em acidentes espectaculares. Tanta é a electricidade ambiente, que os cidadãos correm nas ruas impulsionados pelo efeito de um choque permanente. E como se pode dar a volta ao mundo em apenas uma semana, é nesse acto um tanto ou quanto simplista que os nossos heróis vão passar o resto do romance. Torres com quatrocentos metros de altura sinalefam com os Marcianos com o acompanhamento de luzeiros acesos nas planícies do Far-West Americano... O próprio Marte, aliás também ele é alternativo, pois possui uma vegetação luxuriante, alimentada por enchentes de água fresca captada nos Pólos.

Comboios cilíndricos rolam de uma ponta à outra do nosso planeta, no subsolo, propulsionado por bombas de pressão de ar no interior de tubos de tântalo. E enquanto viajam assim, contemplando tantas maravilhas sem par, os nossos amigos vitorianos aprendem que o Grande Império da China foi desmembrado e dividido entre os Ocidentais de modo a evitar qualquer tipo de ameaça ou de invasão pela parte das raças não-caucasianas. A Inglaterra perdeu o poderio enquanto a Itália - noblesse oblige - reina soberana. O socialismo fracassou à excepção de algumas pequenas comunidades, esquecidas lá para as bandas da Patagónia. Os trabalhadores desempregados pela crescente automação das fábricas converteram-se em pescadores e agricultores sem que em nenhum lado se sussurrasse a palavra "greve". Vivemos em plena utopia, meus senhores ! Nada de revoltas laborais, nada de ditaduras proletárias, nada de guerras ou sequer exércitos. Apenas um destacamento de sapadores-bombeiros para lutar contra as catástrofes naturais ou qualquer - se bem que rara - incursão dos sediciosos anarquistas. Métodos punitivos? Estranho que nunca ninguém tenha pensado nisto antes: um jacto de água electrificada sobre a mão cheia de revoltosos e pronto, acabou-se com o protesto de vez. Combalidos, chamuscados, os raros culpados de delitos ideológicos são conduzidos por um trem eléctrico ao coração do Polo Norte para aí trabalharem para o bem planetário até ao final das suas curtas vidas. Projectos futuros deste mundo ímpar? Ora, impedir os degelos do Polo Sul, transformar o Saara num mar navegável e enfiar os criminosos de delito comum em penitenciárias flutuantes, onde, à menor intimação de revolta, seja mais fácil enviar toda a gente para o fundo do mar com a ajuda de bombas bem colocadas. Finalmente chegados a Portugal, os nossos heróis desfalecem incapazes de suportar o excesso de electricidade que polui o planeta.

Eis-nos perante futuro que nunca foi o nosso. Num mundo de ferro forjado, torres sinaléticas e dínamos a vapor, poluído não pelos petroquímicos mas sim pela electricidade em excesso, um mundo pejado de ventoinhas sempre a rodar, autogiros a zunir como abelhinhas à volta dos arranha-céus formigueiro, tubos de vácuo a cuspirem comboios silenciosos e felizes governos de partido único, sem que seja possível encontrar em lado algum um único computador que seja. O universo de Gernsback por excelência. O mundo das capas da revista Astounding e Popular Mechanics. Um mundo que colapsou no momento em que foi imaginado.

Bradbury disse um dia que escrevia sobre futuros terríveis, não porque acreditasse que eles viriam um dia a acontecer, mas sim para que "nunca" acontecessem. Como um aviso à navegação. Como aqueles mapas que diziam: "a partir daqui há tigres".

Quem ignora os futuros que a Ficção Científica colapsa, acaba por viver neles. O futuro cai-lhes em cima como uma catedral derrocada. Fogem da ovelha Dolly como o vampiro da cruz. E escondem-se em casa a comer bananas sem saberem que também elas são clones.

por...

João Barreiros
JOÃO BARREIROS



inverno 2000

Paradoxo
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