|
Em Xanadu Kubla Khan decretou
Magnífico domo de prazer:
E Alpha, rio sagrado, fez correr,
Por cavernas, para o homem sem medida,
Até um mar onde nunca o sol brilhou. Coleridge, 1816
|
Todos os monstros que a
literatura popular nos ofereceu, costumam
esconder-se atrás de máscaras, sejam elas reais
ou apenas metafóricas. Vlad Tepes, o conde
Drácula, que Bram Stocker imortalizou em 1897,
defendia-se dos olhares do mundo pela magia do
metamorfismo. Era ao mesmo tempo um morcego, um
lobo, uma família de ratazanas, uma réstia de
bruma. Encarnava uma inteligência fria e
implacável, sujeita à maldição de uma fome
sem fim. Morto-vivo completamente assumido, para
ele a eternidade pouco mais era do que uma
sucessão interminável e monótona de noites
sempre iguais. Vlad Tepes não procurava o
convívio do mundo. Os outros humanos não
passavam de um mero rebanho onde ele ia beber o
alimento.
Por outro lado, Mr. Hyde,
um dos primeiro psycho-killers da história da
literatura, criado por Stevenson em 1886,
representava a face oculta do bom Dr. Jeckyl.
Graças a uma droga psicotrópica capaz de isolar
a parte sinistra das nossas almas, o benemérito
doutor pretendia irradicar de vez o mal do ser
humano. Doce ilusão. Acabou por descobrir que
afinal a moral e os bons costumes não fazem
parte do nosso fundo íntimo. O que Jeckyl
encontrou, para sua desgraça, muitos anos antes
de Freud, foi o inferno do Id e o prazer absoluto
que consiste na libertação radical das nossas
líbidos. O rosto disforme e maldoso, que Spencer
Tracy tão bem conseguiu reproduzir na tela sem o
auxílio de qualquer caracterização, era apenas
um espelho do que lhe ia pela alma. O nariz de
Pinóquio sob uma outra forma. Ou melhor, a
máscara eufórica que costuma cobrir a tristeza
sombria de todas as nossas boas intenções. Os
desejos de Mr. Hyde eram afinal os desejos do
corpo, desde há muito reprimidos pela moral
vitoriana. Sexo, álcool e violência. A total
desinibição desculpabilizada. Podermos violar
quem nos apeteça. Beber vinho até ao vómito.
Espancar velhinhos e criancinhas.
Erik é um outro monstro
capaz de se igualar a Tepes e Hyde tanto em
maldade como em engenho. Gaston Leroux criou-o em
1911 e o cinema e teatro nunca mais o deixaram
descansar. Ao contrário dos outros dois que
nasceram humanos e que aos poucos se deformaram,
Erik nasceu já monstro, fisicamente marcado por
um rosto de uma fealdade inacreditável. Erik
não perdeu a sua humanidade. Antes ganhou-a num
combate feroz contra a estupidez, por amor à
Arte e ao Belo Canto. Pois se foi o gosto pela
morte quem destruiu Vlad Tepes e Jeckyl, foi o
fascínio pela Ordem da geometria traçada na
pedra e o êxtase de escutar em paz o som da voz
humana quem deitou Erik a perder. O relato da sua
infância e juventude foi reatado num livro
recente, PHANTOM (1991) de Susan Kay.
Afinal Gaston Leroux não nos dá mais do que
algumas vagas referências a um arquitecto
genial, autor de vários Palácios no Oriente,
daquele tipo de palácios que se escondem uns
dentro dos outros como caixinhas chinesas e onde
os xás da Pérsia podem errar sem que ninguém
se aperceba da presença de um par de olhos
indiscretos. Erik cantou por todas as feiras do
mundo exibindo perante todos o horror do seu
rosto e a beleza da sua voz. Foi necromante,
mágico, ilusionista, arquitecto, engenheiro.
Quando o xá resolveu eliminar todas as
testemunhas dos segredos desses palácios
mágicos, Erik mudou-se discretamente Para Paris,
ajudou a construir a Opera, e estabeleceu-se nas
margens de um lago subterrâneo, junto a um
bosque artificial, onde toda uma ecologia
simulada não passava de um jogo admirável de
espelhos. Desgraçou-o o seu encanto pela voz de
uma jovem soprano, Christine Daae. Afinal
tratava-se da luta entre o sublime e o comezinho.
Entre a solidez dos valores burgueses e a
fragilidade efémera da arte. Se Christine
casasse com o Conde Raoul nunca mais cantaria num
palco. O seu destino seria o destino de todas as
donas de casa da aristocracia. Gerar herdeiros,
condezinhos. Situação inaceitável! Se a voz de
Christine se calasse, como se calou durante a
representação do Fausto, Erik não teria nenhum
pejo em colocar (graças ao talento do
ventriloquismo) na garganta da sua substituta
medíocre, o coaxar grotesco de um sapo. Vejam,
grita ele a quem o queira ouvir, esta mulher
canta tão mal que vai derrubar o lustre. Mítica
cena. De facto, Erik é bem capaz de matar para
que a música dure para sempre. O Conde Raoul,
porém, apenas vê nessa mesma o prenúncio de um
matrimónio perfeitamente banal.
Ressabiado, desgostoso,
perseguido, Erik morre porque o imaginário e a
criatividade são incompreensíveis para a gente
vulgar. Morre porque acredita nas falsas
promessas de Christine. Morre porque retira a
máscara e revela a aparência de uma outra
máscara que é o seu verdadeiro rosto. Morre e
com ele morrem os subterrâneos mágicos, as
portas secretas, os engenhos diabólicos, os
jardins artificiais, os lagos onde nunca o sol
brilha.
Só nunca morre, claro, o
nosso encanto por monstros como ele.
|