Retrocedersimetria: na periferia do império
3.os Encontros de Ficção Científica e Fantástico.
diário da periferia: dia 2

Ontem ocorreu um atraso generalizado nas partidas dos vôos de Londres, devido ao congestionamento do tráfego aéreo. Quer Gatwick quer Heathrow retiveram os passageiros a bordo dos aviões durante mais de duas horas; para alguns foi agradável, para muitos terá sido uma tortura. Esta má gestão dos vôos (e não se põe em causa se teria sido evitável ou não) perturbou planos para o fim de semana, reencontros com as famílias, negócios e também os Encontros de Cascais. Os convidados chegaram cansados e muito após a hora. Obviamente, a reclamar numa resignação que vem do hábito. E contudo, não me posso deixar de admirar com a facilidade dos nossos queixumes. Porque há meia centena de anos, ninguém dava por certa a facilidade de viajar que hoje existe. Ninguém tinha telemóveis para poder comunicar directamente com outros. Vivemos numa era de conforto provocada pela tecnologia, e contudo ainda falamos mal dela, e da pesquisa em novos campos considerados pouco éticos, como a clonagem. Afinal, o que queremos nós realmente?


bug norman spinrad

Faz cerca de trinta anos que um, então, jovem escritor de Ficção Científica dos Estados Unidos embarcou num avião com destino a Londres. Porquê? Porque, nas suas próprias palavras, era lá que as coisas aconteciam. Trazia consigo um romance genial que não encontrara editor na sua terra natal. Encontrou guarida numa revista que gostava da diferença, gostava de arriscar. NEW WORLDS, cujo guru, o sr. Michael Moorcock, que os portugueses conhecem como autor de alguns livrinhos de fantasia heróica (produto que ele escrevia apenas para manter financeiramente viva a sua revista), desbravava, no longínquo país exótico que são os anos sessenta, terreno novo para a FC. Novos estilos, novas preocupações, novas vozes. BUG JACK BARRON funcionaria como uma das primeiras denúncias do poder de manipulação dos media; e contudo, mesmo publicado em fascículos numa revista avant-garde, underground, de um género menor considerado literariamente infantilóide, o romance seria impugnado no Parlamento inglês, e a NEW WORLDS correria o perigo de encerrar as máquinas.

Isto ensina-nos, antes de tudo, que quanto mais surrealista, mais os Poderes Instituídos prestam atenção à arte. Mais forte e perversa é a sua forma de moldar a consciência popular. Uma forma cáustica e irreverente. Ensina-nos, também (mas nós já sabíamos), que a FC é, apesar de tantos insultos, importante, e, quiçá, indispensável para a formação da mentalidade urbana moderna. Spinrad, na sua conferência, ontem, na Loja FNAC do Colombo, falou dos problemas da FC moderna, e da tentativa (grotesta) da Disneyização da arte: ou seja, retirando-lhe tudo o que é dor, reinventando a história de modo a ficar inofensiva. Fazer desenhos animados de grandes tragédias dramáticas (o caso do corcunda de Notre Dame). O futuro da FC não é brilhante, mas a solução talvez se encontrasse fora do mundo anglo-saxónico, aqui, na Europa, onde, segundo afirma, é onde as coisas estão a acontecer, hoje.

por...

Luís Filipe Silva
Luís Filipe Silva


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