SPARES
de MICHAEL MARSHALL SMITHAqui há já algum tempo, li no newsgroup
rec.arts.sf.written, numa discussão algo
acalorada sobre a definição do que seria não
seria a ficção científica o argumento de que
esta seria tudo o que se leria como ficção
científica. Ou seja, existe uma certa forma de
escrever que é comum aos textos de ficção
científica, e que todas as histórias que ao ler
se tenha a sensação de que se tratam de um
conto de FC, o serão. É certo que é uma
definição muito pouco exacta, visto não poder
ser quantificável, não poder ser reproduzida
independentemente uma vez que se trata de uma
noção subjectiva, etc., mas é uma definição
quase tão boa como outra qualquer que tenha
ouvido até agora em relação a este género.
Ao ler este Spares de
Michael Marshall Smith não pude deixar de me
recordar dessa definição. Porque SPARES faz lembrar tudo menos
um conto de ficção científica, ou melhor, ao
lê-lo fiquei com a sensação de que se tratava
de um conto policial (daqueles policiais negros
à Raymond Chandler ou Dashiel Hammet) e não um
conto de FC. Se é certo que a história se passa
num futuro mais ou menos próximo das distopias cyberpunk
um futuro onde existem quintas nas quais
são criados clones para serem usados como peças
sobresselentes (daí o SPARES do título) para quem tem
dinheiro para pagar este "seguro de
vida" e onde um Mega-Mall
(verdadeiras versões gigantes do Centro
Comercial Colombo, que voam de cidade em cidade)
depois de se ter avariado se transforma numa
cidade dividida por andares toda a
narrativa é feita na primeira pessoa, como nas
histórias típicas de detectives, por um
ex-policia, Jack Randall, que depois de expulso
por investigar o que não devia cai numa espiral
de autodestruição (graças não a whiskey
como seria tradicional nestas histórias mas a
uma droga chamada Rapt), torna-se guarda
numa dessas quintas e passados cinco anos ajuda
cinco spares a fugirem. Existe inclusive um certo
sarcasmo nos comentários, típicos dos policiais
negros, mas que no entanto por vezes peca um
pouco pelo exagero. Para realçar ainda mais a
proximidade com os policiais, Jack Randall tem um
amigo que foi morto quando o ajuda, bem como um
amigo/conhecido que só por acaso até é gangster
(apesar de não ser peixe graúdo) e um inimigo
que também só por acaso é um dos Maiores gangsters
da zona.
Apesar de não ser um
livro que se possa considerar excelente, SPARES é mesmo assim uma obra
que se lê bastante bem, e que chega mesmo a ser
cativante em algumas partes, ficando-se contudo
com a sensação que Michael Marshall Smith mudou
de ideias umas quantas vezes em relação à
história, ou que pelo menos não tinha uma ideia
concreta de como esta iria acabar quando a
começou a escrever. Não sendo exactamente um
policial típico, tambem não é exactamente uma
obra de ficção científica (pelas razões
subjectivas indicadas anteriormente), e
possivelmente para isso é mais facil aceitar
certas explicações pseudo-científicas que vão
surgindo. A ajudar à confusão estão ainda as
claras influências da prosa de Neil Gaiman, de
tal forma que não é de se estranhar que o nome
deste surja nos agradecimentos iniciais.
E como todo o bom romance
policial negro nem tudo acaba bem, mas o herói
(ou melhor, o anti-herói) fica com a rapariga
num final que faz lembrar as mensagens humanistas
e positivistas de Gaiman.
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