A gravidade dos crimes, faz o
silêncio? Ou, por outro lado, será que o
silêncio é que faz parecer mais graves as
coisas?
À partida este era um
caso grave. Tanto o parecia ser que a única
coisa ouvida até ao momento era o silvo do ar
bombeado para dentro da sala. Isso ou uma ou
outra voz mais alterada, vinda de outras salas de
triagem criminal.
Tanto silêncio fazia-me
sentir demasiado as lentes na minha íris. É aí
que passa toda a informação no que concerne aos
suspeitos a interrogar. E eu bem tentava,
forçando a vista, decifrar as informações ali
debitadas; mas elas apresentavam-se desfocadas e
o áudio há muito que fora à vida.
Adiante. Estaremos em
presença da detida n.º 100226.A/2096.8.101. O
nome: não sabe, não se lembra, não quer dizer.
O costume...
Foi detida num
laboratório clandestino de genética muito perto
da Cidade-Prisão. Será uma foragida,
eventualmente. A Cidade-Prisão tem
cerca de 180.000 detidos e todos os anos fogem
mais de 1000. E tanto é o medo que, quem parece
viver numa cidade-prisão, somos nós e não
eles.
Seja como for, dei um
passo em frente para sair do campo de recepção
de dados, e com a mão desliguei o link.
Fixei a suspeita. Era
bela. Estupidamente perfeita como só o podem ser
esses espécimes pré-fabricados em laboratórios
de genética. Conheci e até usei
gente dessa: fisicamente perfeitos e mentalmente
retardados.
Sentei-me na borda da
consola de comunicações. Os velhinhos leds
ficaram a piscar no meu rabo. Endireitei-me para
me tornar mais ameaçador , cocei a orelha e
comecei o interrogatório:
Então... o que
fazia naquele laboratório clandestino?
Ela manteve-se impávida
como uma porta quando nos esquecemos do código
de acesso.
Você está
ligada, de alguma maneira, aos assaltos a bancos
de ADN? Insisti.
Não.
Murmura ela, baixando a cabeça.
Conhece alguém
ligado aos assaltos? Continuei.
Não.
Continua ela também.
Assopro para o ar, não
escondendo a minha falta de paciência para estas
coisas.
E suspeita de
alguém? Inquiro, já pouco crente.
Ela levantou a cabeça e,
com um olhar entre o alívio e o temor, diz
baixinho:
Suspeito, sim.
Suspeito de uma coisa...
O meu coração deu um
salto, eu eu também. Aproximo-me e quase como um
pai para a sua filha, pergunto:
Ai sim?... e
suspeita do quê?...
Ela baixa novamente a
cabeça e dispara:
Suspeito que tens
um cu de sílica! E desata a rir fininho,
o que me transtornou mais que tudo.
Deixa-te de
espertezas senão essa carinha vai ficar ainda
pior do que um fígado recusado! berrei.
E virei-lhe as costas,
decidido a acalmar-me. Mais calmo, encaminho o
interrogatório para outra fase.
Como pode
verificar neste holograma e activo o feixe
holográfico, mexendo a minha mão aberta ao
nível dos joelhos você foi detida
durante uma perseguição movida a traficantes de
ADN. Faça o favor de confirmar os dados.
A tipa, instintivamente
ou não, passou os dedos pela sobrancelha fazendo
levantar uns quantos grãos luminosos, que
ficaram a pairar defronte dos seus olhos. Bolas!
Como eu detesto esta moda dos grãozinhos
luminosos! Elas põem daquilo em todo o lado: nos
olhos, nas orelhas, nas asas do nariz... Sempre
aquela porcaria a piscar em volta delas!...
Importa-se de
parar com isso? Pedi, quase como uma
ordem.
Parar com o quê?!
Arregalou-se ela.
Isso das
luzinhas... expliquei como todo o desdém
possível por aquilo.
O Prolumen?
espantou-se ela mas porquê? Toda a
gente usa!
Pois... mas a mim
incomoda-me. Retorqui secamente.
Ela agitou-se um pouco na
poltrona anagravítica , e fez um olhar
escandalosamente entediado.
Não há qualquer
coisa que me explique os meus direitos?
Expeliu ela.
A questão posta
demonstrava falta de conhecimento àcerca da
rotina destas coisas. Isso podia significar que
nunca fora presa.
Aproxime-se do
holograma ensino eu e, com o dedo,
chame o pictograma "Civil"; daí acede
a um formulário...
Está bem!
Interrompe ela, irritada mas que tenho eu
de fazer para me ir embora?
Tanta disponibilidade
animou-me. Ela confessava e eu ia embora mais
cedo... que maravilha!
Se confessar que
participava nos roubos de ADN... insinuei
...e beneficiava do produto do roubo para
ajudar a conceber seres humanos
não-integrados...
Mas eu não tenho
nada a ver com aquilo! lamuriou-se.
Eu...eu...fiquei um pouco
calado e desconsolado por termos de voltar ao
ponto zero. E ela insistiu, agora com mais
determinação:
Eu estava nesse
laboratório porque quero arranjar culpados, e
não consigo arranjar culpados!
A catraia surpreendeu-me
com esta. Contudo, com receio que ela abandonasse
a narração, inquiri quase doce:
Os culpados
de...concretamente?
Os culpados da
minha situação. Diz ela, como se eu já
devesse ter compreendido. Vocês da
Segurança não procuram aqueles que procedem
mal, os culpados? Pois eu quero precisamente
confrontar os culpados com a sua culpa!
Esta frase final fez-me
estremecer, angustiou-me e assustou-me. E não
exagero! O que é que ela disse? "Confrontar
os culpados com a sua culpa"? Há algo aqui
a não bater certo. Estes seres (chamemos-lhes
assim), costumam ter uma inteligência mínima.
Indescritíveis laboratórios de genética
instalados em sub-sub-caves, concebem estes seres
não-integrados com o fim de saciar instintos
primários de perversos ainda mais primários.
Espera-se então que sejam pouco mais do que
cadelinhas falantes. Mas esta... estas frases...
Por isso eu estava
naquele laboratório, quando me apanharam...
Interrompe-me ela os pensamentos.
Quer dizer...os
tipos do laboratório são...culpados!
Tento orientar o raciocínio.
São culpados!
Levanta-se ela, furibunda. Uns
burlões!
Uns burlões? Como
assim?! tento entender Sente-se e
explique, por favor.
Ela voltou a sentar-se e
acalmou depois de inspirar tal como quem vai
contar qualquer coisa desde o princípio. E,
realmente, começou pelo princípio.
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