Aviso ao leitor despretencioso,
descontraído e despreconceituoso: eis aqui um
livro que merece a pena ser lido. Refiro-me ao
estilhaçante EURONOVELA (Caminho, 1998), de Miguel Vale de
Almeida, vencedor do Prémio Caminho de Ficção
Científica de 1997. Politicamente incorrecto a
merecer um pódio no Guinness, as irrisórias
cores com que pinta a Europa (des)unida que se
nos avantaja e o humor mordaz com que a perfura
têm um bom mestre em Gore Vidal e nos seus
implacáveis analítico-pesadelos do mundo de
hoje (e de amanhã?). Não sendo propriamente um
euro-céptico, o antropólogo Vale de Almeida
(autor de diversos ensaios e de um livro de
contos: QUEBRAR EM CASO DE EMERGÊNCIA, 1996) ri-se do euro-cepticismo
tanto quanto do oficial euro-fascínio (já me ia
escorregando a tecla para escrever
euro-fascismo), e constrói um romance cheio de
peripécias e de viperinas reflexões que diverte
tanto quanto dá que pensar.
A história começa em
Lisboa, em meados do século XXI, com três
pontes sobre o Tejo (25 de Abril, Vasco da Gama e
Mário Soares), a língua oficial é o Noidoitx
um alemão simplificado ao alcance de todas as
inteligências , a sede do governo regional, a EuroHaus,
ergue-se 30 pisos acima do Castelo de S. Jorge,
as estátuas gigantescas de Robert Schumann e de
Jean Monet embelezam a cidade, e a casta
privilegiada dos EuroCratas vive em apartamentos
de luxo recuperados do terramoto de 2010, não
longe do grande centro comercial das AmorEuras.
Os protagonistas, Maria Silva uma A42,
Técnica de Conversão Linguística, ou como se
dizia antigamente, tradutora , e Eyup Kaba,
turco um reles A10, Técnico de Higiene de
Trabalho, ou como se dizia antigamente, servente
de limpezas , envolvem-se numa intriga
internacional de vastas proporções em que vale
tudo, desde a Cosa Nostra até ao Quinto
Império, passando por lavagens ao cérebro com a
última palavra em drogas psicotrópicas, a
nEuroSugestina, que faz regressar ao bom caminho
(EuroCaminho) os mais perigosos elementos que o
EuroGov consegue apanhar da subversiva ralé dos
EuroCépticos.
Enfim, uma Europa
controlada pelo R. E. I. C. H. (Região Europeia
Internacional das Comunidades Hunas), e onde
Portugal, como de costume, se fica pelas tristes
meias-tintas até os Descobrimentos se
começaram a chamar Luso-Europeus, e por fim
EuroDescobrimentos: "Os portugueses eram, de
uma estranha maneira, essenciais para a União.
Embora não ocupassem os postos elevados, como os
alemães, belgas ou luxemburgueses, nem os postos
de gestão de pessoal, como os franceses,
tão-pouco estavam no fundo da escala, como os
sérvios, os turcos ou os búlgaros, por exemplo.
Encontravam-se sim num patamar delicado, o do
pessoal auxiliar: tradutores, pequenos chefes de
distrito em regiões periféricas, mecânicos
especializados, programadores de computadores,
costureiras, sargentos do exército, professores
primários."
EuroNovela é uma fábula
quase lhe chamava uma distopia
menos sobre uma sociedade futura que sobre o
poder que é gerado pela ideação de teorias
sobre as inefáveis origens do poder. Todo o
livro é perpassado por inesperadas
ramificações da conspiracy theory, há
sempre uma autoridade secreta acima da mais alta
autoridade secreta que manipula governos,
organizações e monopólios, e há sempre mais
um plano secreto por trás do mais global dos
planos secretos. O misterioso Plano do Novo Mundo
arrasta Maria Silva, Eyup e um amigo (muito
íntimo de ambos!), Manuel, pelos confins da
União até às planícies dos EuroBárbaros da
antiga Rússia, passando pelo centro onde os
italianos já aprenderam a exclamar: EuroMamma
mia!
Em Moscovo, os nossos
heróis descobrem uma ponta do mistério da
grande conspiração: afinal não se tratava de
colonizar um novo satélite natural, mas de
distribuir armas fabricadas em Portugal às
hordas bárbaras das estepes para dizimarem as
populações eslavas, facilitando assim à
civilizada Europa a expansão sem riscos para
leste mas não só, e nos esconsos e nos
interstícios das paredes de Moscovo em ruínas,
nos subterrâneos, nas caves, nos forros dos
prédios fervilha uma multidão de subversivos
EuroCépticos no mais puro estilo wainscot,
monstros misteriosos um pouco na trilha de THE PEOPLE de Zenna Henderson ou, mais
recentemente, de NEVERWHERE de Neil Gaiman, que por fim já
não se sabe se são cúmplices ou adversários
dos nossos heróis.
E mais não digo para
não revelar os mais delirantes meandros desta
tão trepidante quão arrasadora intriga, curioso
ensaio antropológico em que a prelecção é
substituída pela acção, e em que se concretiza
manifestamente a opressão e o mau uso do poder a
todos os níveis (rácico, sexista, de casta,
militar, policial, governamental, etc. etc.) que
o inequívoco Gore Vidal já vaticinava ao
analisar o estado actual das coisas. Pena é que
o autor a partir de pouco mais de metade descuide
a escrita e relaxe o humor e já
dou de barato a desinibida misoginia, em quase
toda a aventura as mulheres são assustadoras ou
brutais, ou então pegajosas, alvarmente
traiçoeiras e estúpidas, mas esse nem é o seu
menor pecado: aproveita o caminho rasgado por
THE CITY AND THE PILLAR mas fica-se pela caricatura...
eu comecei logo por avisar que o
livro não se importava nada de ser, ou parecer,
tão politicamente incorrecto como uma casca de
laranja numa rua da Suíça.
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